• Non ci sono risultati.

Per un'ermeneutica della testimonianza in Pietro Giovanni Olivi

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Condividi "Per un'ermeneutica della testimonianza in Pietro Giovanni Olivi"

Copied!
224
0
0

Testo completo

(1)
(2)
(3)

Scintilla

REViSta DE FilOSOFia E MÍStica MEDiEVal

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 11, n. 2, p. 1-224,

jul./dez. 2014

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB

Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR

2014

(4)

FAE – Centro Universitário

IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval

O IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR

E-mail: scintilla@bomjesus.br ou enio.giachini@bomjesus.br http://www.saoboaventura.edu.br/

Reitor: Nelson José Hillesheim

Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão

Diretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Dr. Jairo Ferrandin Editor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorial

Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Dr. Orlando Bernardi, IFAN Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS

Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC

Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP) Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina) Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)

Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE)

Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España) Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia)

Dr. Ulrich Steiner, FFSB Dr. Jaime Spengler, FFSB Dr. João Mannes, FFSB b) Conselho editorial Dr. Vagner Sassi, FFSB

Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Dr. Joel Alves de Souza, UFPR Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Revisão e editoração: Equipe interna Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches

A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO - http://www. ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm

Catalogação na fonte

Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004-Semestral

ISSN 1806-6526

1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189 189.5

(5)

Sumário

Editorial ...7 Enio Paulo Giachini

Artigos

De como salvaguardar uma identidade: Revisitando o

Testamento de Francisco de Assis ...11 Aldir Crocoli

A regra e a vida dos frades menores: ler o passado e o presente do movimento franciscano a partir do futuro ...45

Daniel Rodrigues Ramosi

Reflexões sobre a relação entre educação e santidade nas vitae dedicadas aos três primeiros santos franciscanos em

perspectiva comparada ...81 Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Victor Mariano Camacho A ideia do franciscanismo ...107

H. Harada

Per un’ermeneutica della testimonianza in

Pietro Giovanni Olivi ...151 Paola Müller

Da intuição do ente: o encontro de pensamento de Heidegger com Duns Scotus ...179

Marcos A. Fernandes

trAduções

Chronicon ...211 Ângelo Clareno

(6)
(7)

Editorial

Franciscanismo é um grande movimento humano-divino nas-cido no século XIII de nossa era e presente hoje praticamente no mundo inteiro, prestando serviço à Igreja e ao mundo. Seu primeiro fundador, Francisco de Assis, foi um homem cativado pela força di-vina, começou a ver o mundo e as pessoas, a vida e a morte a partir da inspiração divina como criaturas-irmãs, uma ordo de harmonia e louvor de seu criador e viver essa inspiração desprovido de tudo, apenas na disposição da fé. Dessa inspiração nasceu um grande mo-vimento cujos tentáculos se estendem até o presente.

De modo fragmentário e limitado, este número da revista quer apresentar algumas reflexões sobre o franciscanismo e e suas origens, seus efeitos nos primeiros grandes pensadores.

Aldir Crocolli divide seu artigo em cinco pontos analisando o Testamento de S. Francisco, mostrando sobretudo uma aproxima-ção com a identidade franciscana ontem e hoje: o deslocamento so-ciogeográfico para a exclusão, a fé, a submissão a todos, o trabalho braçal e a paz como meta.

Daniel R. Ramosi nos apresenta uma análise a respeito da Re-gra de S. Francisco. Na reRe-gra está condensado o carisma. O carisma é o espírito. Espírito é fonte, origem. A esta experiência da origem e necessidade de preservá-la transparente, pertenceu a busca de nor-matizar a vida e inspiração de frei Francisco e de seus primeiros companheiros, da qual surgiu a Regra franciscana. O autor nos fala que a Regra não visava cristalizar a inspiração motriz do movimen-to, mas guardar seu dinamismo primordial e, assim, resguardá-lo no que era essencial.

As três hagiografias, vitae, dos três primeiros santos franciscanos, são objeto do terceiro artigo. Numa análise em perspectiva

(8)

compa-rada, Andréia Frazão da Silva e Victor M. Camacho discutem como as categorias santidade e educação se articulam nas obras Legenda de Santa Clara, Vida Primeira de Celano e Vida Segunda de Celano, de Francisco de Assis, compostas por Tomás de Celano, franciscano original do Reino da Sicília, na primeira metade do século XIII, e a Legenda Assídua (LA), de autoria anônima. Como era a atitude de Francisco em relação à educação, como tratava os letrados que bus-cavam ingressar na Ordem? Qual a relação do estudo com a busca por santidade na pobreza?

Apresentamos, ademais, um texto póstumo de Harada, escrito ainda em seu tempo de estudos em Freiburg, Alemanha, sobre a ideia do franciscanismo. Nele ele tece reflexões sobre a coisa em questão no franciscanismo. Segundo ele, o melhor livro em tempos modernos para mostrar a essência do Franciscanismo é o livro de K. Chesterton. Segundo ele, “Se quisermos experimentar a espiritualidade francis-cana, não deveríamos ir aos livros, mas às poesias, lendas, chansons, música, vida e feitos dos frades menores. Isso porque na essência da espiritualidade franciscana há “algo” que não podemos apreender com palavras. E ali não se trata de algo misterioso, algo “sublime”, mas de algo bem simples e singelo como água, fogo, flores e criança”.

Temos por fim, dois artigos sobre dois discípulos “ilustres” e ilustrados do franciscanismo vindos das hostes universitárias. Temos uma análise da hermenêutica do testemunho em P. Olivi, feito pela pesquisadora italiana Paola Müller e um debate entre Duns Scotus e Heidegger sobre a intuição do ente, feito por Marcos A. Fernandes.

Trazemos por fim um texto de Ângelo Clareno intitulado Chro-nicon, onde apresenta algumas ideias bem próximas de Francisco sobre seus hagiógrafos, seus escritos principais, a estruturação de sua ordem e algumas indicações que podem ser percebidas ainda hoje.

“Falamos de um homem incapaz de ver o bosque por causa das árvores. São Francisco era um homem que não queria ver o bosque por causa das árvores. Queria ver toda árvore como coisa separada e quase sagrada, sendo filha de Deus e, portanto, irmão ou irmã dos homens (...)” (Chesterton, S. Francisco de Assis).

(9)
(10)
(11)

dE como Salvaguardar

uma idEntidadE: rEviSitando

o tEStamEnto dE

FranciSco dE aSSiS

Aldir Crocoli, capuchinho (alcrocoli@gmail.com)

Resumo: Aqui, depois de uma breve contextualização históri-co-crítica do Testamento e da Ordem de Francisco no momento da elaboração desse escrito, o autor levanta e analisa estes cinco pontos deste documento que, segundo ele avalia, poderiam descrever e reve-lar a identidade franciscana a ser preservada ou resgatada: a partilha de vida com os excluídos como caminho para o ser menor, a fé como crença da atuação de Deus na vida, a subalternidade como modo de estar na sociedade, o trabalho braçal para compartilhar a condição dos pobres e, por último, a paz como valor-meta. Conclui desafian-do os leitores a fazer a hermenêutica desafian-dos mesmos para a própria realidade.

Palavras-chave: fé, subalternidade, trabalho, excluídos, paz, Testamento.

InTRODuçãO

No decreto Perfectae caritatis do Concílio Vaticano II, do qual estamos vivendo os cinquenta anos de sua realização, que trata da renovação da Vida Religiosa, encontra-se esta preciosa orientação: “A atualização da vida religiosa compreende ao mesmo tempo con-tínuo retorno às fontes da vida cristã e à inspiração primitiva e

(12)

ori-ginal dos institutos, e adaptação dos mesmos às novas condições dos tempos” (PC 2). Neste momento histórico em que a Vida Religiosa atravessa um período muito exigente faz-se mais significativa ainda esta recomendação. Neste momento histórico em que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, seguir esta orientação dá segurança, pois certamente a orientação foi fruto da inspiração do Espírito Santo.

É com o intuito de acender algum farol que se tecerá este artigo, quando o quadro da Vida Religiosa está perplexo com o que se passa. Se este ensaio mira sobretudo ao passado é com o objetivo específi-co de fornecer luzes para o presente, não por saudosismo. Quanto mais se deseja avançar de modo radical, mais urge recorrer ao passa-do para tomar impulso e dar o passo com segurança. Séculos antes do Concílio, o próprio Francisco de Assis procedeu desse modo na elaboração do Testamento. Dava-se conta ele de que sua Ordem, in-fluenciada pela mentalidade hegemônica do novo momento históri-co, enveredava por caminhos estranhos à proposta original, revelada por Deus. Ao invés de impor novas normas preferiu tentar salvar a identidade, fazendo memória de como a identidade nasceu para daí extrair decisões para o presente e futuro de sua Ordem.

Por isso, o Testamento de Francisco foi escolhido como o fio con-dutor deste ensaio de reflexão. Para ele também a elaboração desse texto foi um processo longo, árduo, exigente e conflitivo. Assim o é para nós ao buscarmos responder às circunstâncias atuais da Igreja e da sociedade, a partir de identidade fornecida pelo carisma suscitado pelo Espírito na Igreja. Como se sabe, o Testamento pode ser consi-derado como o ponto de convergência de toda a obra legislativa de Francisco (mesmo se pela Quo elongati de Gregório IX não pode ser considerado como tal). Desde a chegada dos primeiros irmãos, a re-gra foi sendo construída continuamente, nas assembleias anuais dos frades, qual assembleia constituinte. Crescendo muito o número de frades, provocado também pela Cúria de Roma, Francisco reelaborou a Regra. E uma vez modificada pela assembleia dos frades e retocada por Roma, foi aprovada com bula, não mais podendo ser adequada.

(13)

Com o Testamento, Francisco tenta dar uma nova chave de lei-tura para a regra naquele novo momento histórico, colocando em evidência aquilo que acabara recebendo novo significado pela se-gunda geração de frades. O Testamento objetiva recolocar os frades diante da proposta original para que, confrontando-se com ela, os frades pudessem assim manter acesa a mesma chama inicial. Essa dinâmica do documento de retomar o passado foi provocada pela situação do presente para que fornecesse uma chave de compreensão do presente. Aqui serão examinados cinco aspectos da memória evo-cada no Testamento, da qual o próprio Francisco infere exortações para o presente e futuro da Ordem. Esses pontos se constituem em verdadeiro núcleo da identidade. São esses os pontos a serem abor-dados: a) a partilha de vida com os excluídos como caminho para a fraternidade evangélica; b) a fé como leitura da atuação de Deus na vida; c) a subalternidade/minoridade como modo de ser neste mun-do; d) o trabalho manual como meio de solidarização aos pobres; e e) a paz como valor-meta.

O Testamento de Francisco até poucos anos pertencia à classe dos textos “desconhecidos”, mesmo se ao longo da história sempre tenha sido o escrito que mais gerou conflitos no interno da Ordem. Recentemente, isto é, nos últimos 60 anos, ele vem ganhando sem-pre mais espaço no estudo dos pesquisadores, desde a tese de douto-rado de Kajetan Esser sobre ele. Convém mencionar aqui uma obra recente de Pietro Maranesi, um jovem Frei Capuchinho, italiano, publicada em 2009, como a mais significativa sobre este escrito de Francisco de Assis.

O presente ensaio não quer ter caráter de rigor científico. Muitas vezes serão citados autores sem fazer referência à fonte. Vai se pro-ceder desse modo para dar mais leveza ao artigo. Se alguém desejar comprovar alguma destas menções, é suficiente que contate com o autor. (No início do artigo se encontra o endereço eletrônico.)

Oxalá o ensaio possa ajudar a quantos anelam ardentemente fazer ressuscitar em nossas vidas, hoje, o mesmo espírito que animava Fran-cisco e seus primeiros companheiros nos primórdios do século XIII.

(14)

Antes, porém, de começar a análise do nosso tema é necessário que se situe o Testamento de Francisco no âmbito da sua vida e na de sua Ordem, bem como mostrar como está estruturado, pois tam-bém a estrutura já é, de per si, uma chave de leitura. Isto será feito no próximo passo.

1 o tEStamEnto na vida dE FranciSco E na vida da ordEm

São dois aspectos importantes a serem considerados aqui, antes de analisar o documento: o primeiro é a história do surgimento do Testamento: razões que o geraram e reações que desencadeou; e o segundo aspecto, na realidade mais significativo que o anterior, é o contexto existencial quer de Francisco, quer dos Frades no momento da redação do Testamento.

1.1 notas históricas do surgimento do testamento

Sabe-se pelas poucas informações chegadas do passado, que Francisco, provavelmente no mês de maio de 1226, estando pró-ximo a Sena, para onde havia sido levado para dar continuidade ao tratamento da doença dos seus olhos, sofreu séria crise de saú-de. Tendo passado a noite inteira vomitando sangue, temendo sua morte, os companheiros que estavam próximos lhe solicitaram: “... deixa a teus irmãos alguma recordação de tua vontade, para que, se o Senhor quiser chamar-te deste mundo, teus irmãos sempre possam dizer e o tenham na memória: Em sua morte, nosso pai deixou a seus filhos e irmãos estas palavras”1. Naquele momento Francisco fez três recomendações: “que os irmãos observem a pobreza, que se amem reciprocamente e que sejam sempre submissos à Igreja”.

Porém, uma vez superada a crise aguda de saúde, o santo foi sendo conduzido em direção a Assis onde queria morrer. Depois de 1. Compilação de Assis, 59,4. Também Espelho de Perfeição (maior), 87.

(15)

alguns dias de descanso em Celle de Cortona, retomou sua viagem para Assis, provavelmente nos primeiros dias de junho. Devido aos litígios entre Perúgia e Assis, ingressou na área de sua cidade pela região de Nocera, estabelecendo-se nas montanhas de Bagnara, mais saudáveis que a planície escaldante de Assis no tempo de verão. Aí neste lugar teria começado seriamente a pensar num Testamento.

As informações de que se dispõe atualmente permitem deduzir que esse documento foi redigido a muitas mãos. Algumas fontes, por exemplo, reportam que Francisco “quis que se escrevesse em seu Testamento que todas as celas e casas dos irmãos deveriam ser cons-truídas de barro e madeira para que melhor fossem observadas a pobreza e a humildade”2. No entanto hoje lemos o seguinte, em seu lugar: “Cuidem os irmãos para não receber de modo algum igrejas, pequenas habitações pobrezinhas e tudo o que for construído para eles, se não estiver como convém à santa pobreza que prometemos na Regra, hospedando-se nelas sempre como forasteiros e peregri-nos” (Test 24). A mesma fonte mostra que a alteração teria sido introduzida, pois a

alguns frades não lhes parecia bem que as casas dos irmãos deves-sem ser construídas de barro e madeira, porque em muitos lugares e províncias, as madeiras são mais caras do que as pedras. E o bem-aventurado Francisco não quis discutir com eles, porque es-tava muito enfermo e perto da morte, pois viveu ainda por pouco tempo3.

Igualmente, os versículos 6-13, segundo F. Accrocca4, teriam sido um acréscimo posterior motivado pela atitude de superioridade 2. Compilação de Assis, 57,17; Espelho de Perfeição (maior) 9,11.

3. Compilação de Assis, 106,26-27; Espelho de Perfeição (maior) 11,4-5. 4. Cf. ACCROCCA, F. Francesco e le sue immagini. Padova: Centro di Studi Francescani, 1997, p. 22-24. Essa opinião é compartilhada, embora não integral-mente, por Pietro MARANESI (L’Eredità di Frate Francesco. Assisi: Porziun-cola, p. 158-165, 2009) e por Giovani MICCOLI (Francesco d’Assisi, realtà e

(16)

que frades estariam assumindo em relação à parte do clero diocesa-no, postura inaceitável para Francisco. Ele teria se dado conta disso depois da primeira redação do Testamento. Por isso Francisco inter-rompe a série de memórias para inserir uma advertência no presen-te, como mostram os verbos usados no presente do indicativo. Da mesma forma, o versículo 34a (“E não digam os irmãos: Esta é outra regra, porque esta é uma recordação, uma admoestação, uma exor-tação e o meu testamento...”) deixa entrever que frades estivessem a par do conteúdo deste novo escrito e estivessem argumentando ser uma nova regra. Por isso Francisco sente a necessidade de contra-ar-gumentar, dando as razões e definindo a natureza do Testamento.

Parece, pois, consenso afirmar que o Testamento passou por vá-rias redações nos últimos meses de vida do Santo (julho, agosto e setembro de 1226). Para Maranesi esse texto foi construído num diálogo difícil entre Francisco, com sua proposta original revelada por Deus, e os frades da segunda geração, com seu novo contexto sócio-eclesial, muito diverso daquele dos primeiros companheiros de Francisco.

1.2 o contexto de Francisco e sua ordem por ocasião do testamento

Em relação a este segundo aspecto deve-se considerar alguns ele-mentos: o movimento franciscano teve sua regra aprovada pelo papa em 1223 e se tornou uma “Ordem”

,

ao lado dos beneditinos, cister-cienses, cartuxos e outros mais. Com uma Regra aprovada pelo Papa, a autoridade mais excelsa, o “direito a um lugar ao sol” na socieda-de socieda-de então estava garantido, isto é, os frasocieda-des se tornaram entidasocieda-de social reconhecida. Os frades haviam crescido espantosamente em termos numéricos. E nos últimos dez anos muitos doutos e homens projetados na ciência e na política haviam se tornado frades. Tudo isto significava um novo status social. Como retrata a parábola da Verdadeira Alegria, muitos dentre os milhares de frades haviam se

(17)

deixado tomar por este sonho de grandeza5. Viam-se cercados de nobres, de doutos e poderosos, de religiosos com grande influência política. Sentiam-se pessoas respeitadas onde quer que estivessem, diversamente dos primeiros tempos quando todos os desprezavam e sobre eles pairava, pelo menos, um ar de desconfiança e suspeita. Em não raros lugares não eram aceitos porque confundidos com hereges, devendo tomar outros rumos. Pode-se dizer que haviam regressa-do da periferia social e eclesial para onde haviam desciregressa-do com sua opção evangélica de “deixar o mundo”. Encontravam-se novamente reabsorvidos pelo sistema social e pela mentalidade de uma Igreja de poder, como era aquela da Idade Média.

Além disso, sentiam na prática que a Igreja institucional esta-va lhes confiando uma noesta-va missão, da mais ampla envergadura. A Igreja os queria como seus colaboradores imediatos na expan-são da cristandade, segundo sua perspectiva missionária, enquanto Francisco os via sobretudo como “penitentes em missão” ou frades que vão pelo mundo, evangelizando e fazendo penitência. A Igreja latino-americana no Documento de Aparecida expressa essa pers-pectiva de Francisco com os termos “discípulos missionários”. São duas perspectivas diversas. E concretizando esta perspectiva de uma Igreja de poder, os frades também haviam retornado à metodologia de evangelização que não respeitava a subalternidade e a minoridade, própria da cristandade.

Some-se a esses fatores o fato de que muitos frades desconheciam quase por completo as intuições iniciais do movimento franciscano. Presentes em muitos países da Europa, enfrentando realidades total-mente diversas, com um processo de iniciação, com certeza, precário (quando existia!), já não conseguiam se situar na continuidade da 5. Esse texto, datado provavelmente de 1224-5, descreve os frades entre os doutos, os detentores do poder político e econômico e os grandes santos, residindo em grandes conventos. Sentem-se tão identificados com estes que dizem (ironicamen-te) a Francisco: “Nós somos tantos e tais que não precisamos mais de ti. Vai aos crucíferos e pede lá”.

(18)

intuição inicial. Francisco se sente às vésperas da morte e, diante da revelação que Deus lhe havia confiado ao longo da vida, via-se na obrigação de amar seus irmãos “até o fim”, indo ao encontro deles para orientá-los em conformidade com a intuição/revelação original. Por isso, o clima era de um diálogo tenso, no qual Francisco não podia renunciar ao seu papel “irmão de todos”.

Este ambiente de tensão fraterna que transparece no Testamento foi interpretado pelo pastor calvinista, Paulo Sabatier, no final do século XIX, como um “ato de rebelião” contra a Igreja, que blo-queava e queria institucionalizar o movimento franciscano. Seria o Testamento, para ele, o grito derradeiro de um insurgente. De uma perspectiva diferente, o franciscanólogo Kajetan Esser entendeu esse clima como resultado da incapacidade do fundador continuar a ge-renciar um movimento que, seguindo a lei natural do crescimento, se lhe estava escapando das mãos. O Testamento seria um escrito resultado da pressão de um grupo de frades saudosistas dos primei-ros tempos que lhe estavam próximo. Já Maranesi lê esse momento da vida de Francisco e da Ordem como resultado, por um lado, da consciência de quem se sabe destinatário de uma revelação recebida em favor da Igreja e da humanidade e, de outro, se sente diante de uma grande maioria de seus seguidores que, sem haver percorrido o itinerário de conversão de Francisco e seus primeiros seguidores no início da caminhada, aspiravam pautar-se pelo novo contexto histórico de uma Ordem forte, capaz de novos empreendimentos em favor da Igreja como um todo.

Convém também não olvidar que o Testamento deve ser consi-derado como ponto de chegada de um longo processo de maturação institucional, iniciado com o Propositum vitae de 1209, passando pelas várias edições da chamada “Regra não Bulada” (a versão hoje conhecida seria a última desta trajetória, a de 1221) que desem-bocaram na Regra Bulada de 1223, menos de três anos antes do Testamento. Por isso Francisco escreve: “Para que observemos mais catolicamente a regra que prometemos ao Senhor” (Test 34b). Esta consciência da necessidade de novos referenciais de discernimento

(19)

para garantir fidelidade à identidade na caminhada futura foi, com toda a certeza, o fato determinante para o surgimento do Testamen-to e de sua estrutura interna.

2 a EStrutura do tEStamEnto

Ainda que o objetivo destas páginas não seja o estudo do Ttamento, é elucidativo que se faça uma referência mínima à sua es-trutura, pois ela de per si já oferece uma chave para a leitura e in-terpretação do mesmo. O consenso entre a maioria dos estudiosos aponta para uma divisão em três partes que, aliás, parece sugerida pelo próprio Francisco no versículo 34a: “esta é uma recordação, uma admoestação, uma exortação e o meu Testamento”. Considerando-se que os termos “admoestação e exortação” podem ser assumidos como sinônimos, encontramos aí as três partes: uma parte de recordações (as memórias, nos versículos 1-23); uma segunda parte contendo ad-moestações (vv. 24-33); e a terceira, com as recomendações de como considerar e lidar com este escrito, e a bênção final (vv. 34-41).

Essas três partes estão assentadas numa dinâmica interna muito consistente. Ao explicitá-la, alarga-se a compreensão. Francisco co-meça com a memória do seu próprio passado: o que o Senhor ha-via feito com ele, antes da chegada dos primeiros companheiros (vv 1-13). O relato deste passado é decisivo, pois quando os primeiros companheiros se sentiram chamados a se associar a Francisco, dese-javam viver o que Francisco já vivia6. Segundo Maranesi, Bernardo de Quintavalle e Pedro Cattani viam no jeito de viver de Francisco 6. O Anônimo Perusino, fonte histórica muito apreciada ultimamente, escrita menos de vinte anos após a morte de Francisco, como memória de Frei Bernardo e Egídio, narra desta forma a chegada dos primeiros companheiros: Bernardo e Pedro Cattani dizem a Francisco com simplicidade: “Doravante queremos estar con-tigo e fazer o que tu fazes” (AP 10,3). As demais fontes (Leg. Três Comp. 27, 2Cel 15 e Leg. Maior 3,3), ao narrar o mesmo episódio, omitem esta parte da frase que precede o pedido de saber o que fazer com os bens. (O grifo é nosso)

(20)

um modo evangélico de ser e desejavam se associar a ele para “viver como ele”. Então Francisco recorda esses fatos dos primeiros tem-pos, porque deseja que a experiência vivida nos primórdios pudes-se pudes-servir de referência diante das novas realidades emergidas vinte anos mais tarde, quando estão tecendo o Testamento. As realidades a que se faz referência transparecem na segunda parte do Testamento, como para dizer: para sermos fiéis ao que Deus deseja diante destes novos desafios, precisamos nos confrontar com o que ele nos revelou nos primeiros tempos.

Por outro lado, há outro aspecto da dinâmica interna a conside-rar: Por que Francisco, na parte da memória do passado, lembrou essas coisas e não outras? Haveria tanta outra coisa das origens que nos interessaria enormemente. Mas estas coisas não lembradas que nos interessariam não foram lembradas, porque não teriam incidên-cia direta nos desafios do presente. Ou melhor, não eram os aspectos sobre os quais se precisava ajudar a discernir, dar argumentos para decidir no presente e para o futuro. Pode-se dizer então que essas duas partes são, de fato, correlatas: uma determina a outra. Isto é, são os desafios do presente na segunda parte do Testamento que con-dicionam a seleção das memórias na primeira parte. E, por sua vez, as memórias históricas da primeira parte funcionam como critérios para entender a segunda.

As duas primeiras partes constituem o essencial do Testamento. A segunda, especificamente, é o objetivo prioritário do Testamento e a primeira está aí para servir de ponto de referência para a segun-da. Nestas duas, então, se escondem os valores que Francisco deseja repassar aos irmãos antes de sua despedida na terra. Eles constituem o coração de sua proposta de vida. Este núcleo de elementos/valores forma o perfil do Frade Menor, o núcleo identitário do ser frade menor, como se verá abaixo.

Já a terceira parte, vv. 34-41, expressa a perspectiva de compreen-são do texto que Francisco está elaborando. Em primeiro lugar ele confirma a natureza de Testamento: ele quer, explicitamente, deixar

(21)

algo de precioso em herança aos seus irmãos. Esta herança precisa ser cuidada com carinho e vigilância. Reafirma ainda que o que está deixando não é algo contrário ou divergente do professado na regra. Ao contrário, é algo destinado a ajudar “a viver mais catolicamente a regra prometida”.

3 valorES nuclEarES a prESErvar

Feitos estes breves esclarecimentos de contexto e de estrutura, pode-se agora passar para a identificação e descrição dos valores da identidade minorítica que Francisco, quase moribundo, se sentia no dever de preservar. Não se pretende fazer aqui uma análise exaustiva, mas tão somente apontar a direção, para que essa análise possa acon-tecer no futuro. Substancialmente os pontos que serão desenvolvidos se baseiam na mencionada obra de Maranesi.

3.1 a partilha de vida com os excluídos como caminho para a fraternidade evangélica

Ao longo da história da Ordem Franciscana, a pobreza tem sido o cavalo de batalha de todos os movimentos internos de reforma, isto é, de todos os desejosos de retornar à antiga “forma de vida” vivida por Francisco e seus primeiros companheiros, vista como “vida de pobreza”. Isto aconteceu provavelmente porque imagina-vam essa “forma de vida” não só calcada na pobreza material, mas como um jeito de viver determinado pela pobreza. Entendiam que o carisma franciscano consistia numa vida marcada pelo ascetismo. Talvez esse engano seja consequência da leitura da conversão feita pelo seu primeiro biógrafo oficial, Frei Tomás de Celano, retrato perfeito da mentalidade hegemônica na Igreja. Para esse biógrafo, o fato determinante da conversão de Francisco foi o despojamento das vestes diante de Dom Guido, bispo de Assis, de representantes legais da comunidade e de grande massa de populares. Celano até organi-za toda a cronologia da vida de Francisco em base a este fato, por

(22)

julgá-lo nuclear e fundante. A maioria dos outros autores do século XIII seguiu esta perspectiva, sem se questionar esse ponto de vista. Somente há poucas décadas descobriu-se o engano.

Deve-se esse feito a um leigo, professor de história medieval na Universidade de Roma, Raoul Manselli, falecido em 1984. Manselli colocou sob suspeita esta visão dos biógrafos medievais. Para propor sua nova visão baseou-se na única fonte autobiográfica de Francisco, o Testamento, nos versículos 1-23, sobretudo nos versículos 1-3. Ali o móvel da conversão decisivamente se situa na opção pela exclusão, na sua passagem para o mundo dos leprosos, os mais marginalizados da sociedade e não para a pobreza7. Esta percepção desloca o foco da pessoa da autoprivação dos bens para solidarização com os leprosos, a quem passa a servir com misericórdia. Quem, como Celano e seus seguidores, pensa no esforço para desprender-se dos bens, infelizmen-te, ainda está preocupado consigo mesmo e com a dimensão ascética que, embora necessária, é secundária. Ao passo que fazer a mudança de lugar social para estar junto aos relegados da sociedade, implica colocar a estes como centro da atenção e do cuidado de Francisco. Esta nova perspectiva de leitura da conversão de Francisco está se impondo e atualmente é compartilhada por outros estudiosos como Grado G. Merlo, Giovanni Miccoli, Pietro Maranesi, Felice Accrocca etc. Ela oferece novo referencial de leitura da vocação franciscana.

O primeiro dado que o Testamento oferece é justamente este: Francisco, às vésperas da morte, reconhece que ingressou no segui-mento de Jesus Cristo conduzido para o meio dos leprosos, pelo

7. “O momento central da conversão (de Francisco) não foi o momento paupe-rístico, mas outro, humanamente mais profundo e válido, o da compreensão do comum sofrimento humano da alma – a lepra da alma – e do corpo. Aí está, por-tanto, como momento decisivo da conversão de Francisco de Assis, a passagem de uma condição humana a outra, a aceitação da própria inserção em uma marginali-dade, o ingresso entre os excluídos, cuja característica era justamente ser recusado por todos pela sua característica, pela sua condição de horror” (MANSELLI, R.

(23)

próprio Deus. Foi cuidando desses últimos com misericórdia que transmudou sua vida. Antes estava experimentando, no dizer de Maranesi, a amargura de uma vida autocentrada. Toda sua expec-tativa se centrava na busca de glória, de prestígio, de grandeza e de riqueza. Tudo isso pode ser resumido na palavra “ser cavaleiro”. O fracasso na batalha de São João de Collestrada e o consequente ano de prisão em Perúgia, de onde foi resgatado devido a uma gravíssima enfermidade, começaram a desmontar esse projeto de vida gloriosa. Refeito da longa doença que o acometeu na prisão (mesmo sendo jovem, o debilitou tanto que precisou caminhar apoiado em bengala – Cf 1Cel 3,3), começou uma luta consigo mesmo para migrar para outras paragens. Começou seu processo de transferência para as peri-ferias existenciais. Passou a aproximar-se dos pobres, começou a ouvi -los e conviver com eles (Leg. Três Comp. 8,4; 9,5), fez experiência de pobre (LTC 10,5-6). Depois até se tornou “tão familiar e amigo dos leprosos que, como está escrito em seu Testamento, permanecia entre eles e os servia humildemente” (LTC 11,11). Os leprosos re-presentavam o diametralmente oposto ao que ele buscava: eram seres humanos inúteis e desprezados, privados absolutamente de todo o prestígio humano, social e religioso. Vivendo no autocentramento, a visão/lembrança destes lhe era “amarga”. Queria manter distância deles e também da possibilidade de ser como eles.

Mas aí Francisco reconhece que, “misteriosamente”, Deus o conduziu para o meio deles, quase contra sua vontade. E aí “ele fez misericórdia com eles”, isto é, deu o melhor de si, deu o coração a es-ses miseráveis. E por incrível que pareça, essa atitude transmudou o horizonte existencial de Francisco: o amargo virou “doçura de alma e de corpo”. Quer dizer, Francisco experimentou uma realização mui-to mais profunda, algo que nunca havia provado e que demonstrava ser uma realização autêntica e verdadeira. Deu-se conta de que al-cançava uma identidade insuspeita: ser “Irmão Menor”. Antes so-nhava em se sobrepor a todos pela grandeza e pela riqueza; agora, conduzido por Deus, busca ser o servo de todos, a começar pelos que nem sequer pertencem à sociedade, por sua exclusão radical.

(24)

Não é possível tornar-se irmãos dos últimos sem se desfazer dos bens materiais. A pobreza é uma “conditio sine qua non” para chegar aos últimos, mas ela é apenas caminho ou estratégia, e não a meta como historicamente sempre se tem interpretado. O objetivo de Francisco não era viver a pobreza. Conduzido por Deus, Francisco encontrou os leprosos a quem fez misericórdia, isto é, deu o coração a esses míseros, como etimologicamente dá a entender essa palavra. Ele viveu, na feliz expressão de José Antônio Pagola, a mística dos olhos abertos. Rompeu com o autocentramento para se focar nos mais necessitados, passando a viver como eles e para eles. Esta pas-sagem para a periferia o tornou, de fato, “irmão menor” dos pobres. Surgiu nele, assim, uma nova identidade, antes insuspeita. Sentiu uma realização profunda. O amargo de antes se tornou doce; os va-lores de antes não lhe dizem mais nada. Por isso pôde abandonar o mundo, sair do sistema que privilegia as vantagens e privilégios pessoais e as riquezas, e viver, envolto em alegria, na simplicidade, no desprendimento dos bens, na familiaridade com todos, pois nada mais tinha a defender em si ou para si mesmo.

Esta trajetória não foi realizada em força de uma ascese. Também se fosse movido tão somente pelo esforço pessoal, não teria ido mui-to longe neste percurso. Francisco foi se dando conta de duas coisas: em primeiro lugar do valor e da dignidade das pessoas, especialmen-te daquelas que são, ordinariamenespecialmen-te, desprezadas. A fé o ajudou a perceber nestas a presença e o amor de Deus que constitui a todos como irmãos amados por Ele. Passou a sentir-se um irmão menor, igual a eles em tudo.

Em segundo lugar, constatou que os leprosos, não tendo proprie-dade alguma, viviam a confiança em Deus e a entreajuda recíproca. E isto os tornava cada vez mais irmãos, familiares entre si. Os bens são geralmente uma interferência nesta relação de fraternidade. É consta-tável que a carência de bens é sempre um convite para o outro vir ao encontro, ao passo que a abundância dos mesmos naturalmente leva a ver os outros como concorrentes e adversários. Quem pode acudir e cuidar de necessitados se sente valorizado e honrado, e igualmente quem é cuidado. Descortinou-se assim para Francisco outro universo

(25)

de referência: a fraternidade, desde os últimos, como utopia humana, em substituição à busca de honras e vantagens para si. Enquanto ca-valeiro, seu ideal anterior, teria de andar sempre armado e os demais seriam todos inimigos potenciais, senão na violência da guerra, na competição da honra. Ao passo que o viver como irmão de todos faz desaparecer a competição e toda a forma de rivalidade e para fazer emergir a gratuidade, a colaboração, o amor recíproco e misericordio-so, a verdadeira alegria e a realização profunda.

Esse é o caminho para a paz, como mais abaixo se verá, tanto para a pessoa individual, quanto para a paz como fruto de um modo sócio-político de conviver.

4 a Fé como lEitura da atuação dE dEuS na vida É forçoso reconhecer que uma trajetória existencial semelhante à de Francisco se torna inviável fora do ambiente da fé. No seu breve relato histórico no Testamento ele emprega sete vezes (biblicamente, esse número indica perfeição e plenitude) expressões em que reco-nhece a presença e a ação de Deus em sua vida: “foi assim que o Se-nhor concedeu a mim...” (v. 1); “e o próprio SeSe-nhor me conduziu...” (v. 2); “e o Senhor me deu tão grande fé...” (v. 4); “depois o Senhor me deu e me dá tanta fé...” (v. 6); “e depois que o Senhor me deu irmãos...” (v. 14a); “mas o Altíssimo mesmo me revelou...” (v. 14b); “Como saudação, o Senhor me revelou que disséssemos...” (v. 23). Francisco, certamente sem intencionalidade alguma, engloba toda a sua história de vida no ambiente da fé num reconhecimento da evi-dente atuação de Deus. Faz isso ao começar a primeira frase da parte narrativa (foi assim que o Senhor concedeu a mim) e ao concluir a última dessa parte (como saudação, o Senhor me revelou que...) em forma de confissões de fé na ação transformadora de Deus em sua história pessoal. Esse pode ser um indício de que se sentiu alvo direto da intervenção de Deus em sua vida. E o resultado foi sua migra-ção para outro espaço geográfico-humano: do ambiente da cavalaria para o ambiente dos excluídos, do centro à periferia.

(26)

Foi a consciência desta intervenção/atuação de Deus em sua his-tória, e não o esforço pessoal, que permitiu a Francisco fazer a tran-sição para os leprosos, pois o ser humano precisa constantemente de um ponto de apoio. Não é possível a alguém sair de um sistema, antes de descobrir onde e como pôr os pés em outro. Francisco tem consciência de haver feito uma migração para outra ambiência exis-tencial apoiado em e por Deus. De fato, ele saiu da geografia econô-mico-capitalista para se instalar na geografia sócio-humana. Ou, na feliz expressão de David Flood, Francisco deixou de viver em “escala comercial” para passar a viver em “escala humana”, onde os valores referenciais são totalmente outros: aqui o valor máximo é a pessoa humana, lá, na escala comercial, o valor máximo é a plus-valia, o lucro, a vantagem pessoal. Tal transição, é forçoso reconhecer, só é possível por motivação de fé, sustentado pela fé.

Pouco importa se a consciência desta atuação de Deus se dá an-tes ou depois do acontecido. Pietro Maranesi sugere que essa leitura de fé de sua história, provavelmente, se deu post factum em Francisco de Assis. Isto não significa que Deus não o estivesse conduzindo no momento em que as coisas estavam acontecendo, mas sim que ficou clara a intervenção de Deus nele depois que os acontecimentos ha-viam se passado. Assim sucedeu também com os israelitas quando, relendo a passagem do Mar Vermelho, séculos mais tarde descrevem que as águas do mar formaram como que duas muralhas, uma à esquerda e outra à direita, para eles poderem passar a pé enxuto (Ex 14,22). É evidente que se trata de figura de retórica, um modo po-pular de se expressar, com o objetivo de mostrar a evidência inques-tionável da intervenção de Deus no acontecido, e não um modo de descrever o fato histórico em si mesmo.

Em Francisco a consciência dessa atuação de Deus tem uma co-notação toda particular. A experiência com os leprosos lhe descorti-nou novo horizonte. O processo de rebaixamento social e de exclu-são vivido com eles o ajudou a perceber que em Deus a dinâmica é a mesma: De grande e todo poderoso se faz pequeno, frágil, impo-tente, excluído, como Francisco expressa no salmo 15 do Ofício da

(27)

Paixão. Aliás, essa resulta ser a perspectiva cristológica de Francisco, expressa em múltiplas iniciativas ou momentos da vida. Por exem-plo, cria a encenação do Natal “para ver, de algum modo, com os olhos corporais os apuros e as necessidades da infância dele” (1Cel 84,8). Celebra na oração o nascimento de um Menino santíssimo e dileto que “nos foi dado e nasceu por nós no caminho e foi colocado no presépio, porque ele não tinha lugar na hospedaria” (OP 15,7). Quer dizer, vê este Filho de Deus como um peregrino, nascido fora de casa, rejeitado pela sociedade que não lhe dá lugar. E mais: com-preende que este fato não foi pura causalidade. Foi opção. O Verbo de Deus foi enviado a Maria “de cujo útero recebeu a carne da nossa humanidade e fragilidade. E Ele, sendo rico, acima de todas as coisas quis neste mundo, com a beatíssima Virgem, sua Mãe, escolher a pobreza” afirma numa carta aberta aos cristãos (2Fi 5). Já na Regra não Bulada afirmara esta percepção, colocando Jesus Cristo como referência na opção pelos excluídos por Ele (Jesus) como que ter passado por esta experiência: “E não se envergonhem (de estar entre os últimos e até de pedir esmolas), mas antes recordem de que Nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus vivo e onipotente, expôs sua face como pedra duríssima, e não se envergonhou; e ele foi pobre e hóspede e viveu de esmolas, ele e a bem-aventurada Virgem e seu discípulos” (RnB 9,4-5). E ainda: na primeira admoestação escreve que “diariamente o Filho de Deus vem a nós em aparência humilde; diariamente ele desce do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacer-dote”. “E dessa maneira o Senhor está sempre com seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até o fim dos tempos” (Ad 1, 16-18.22). Quer dizer, a perspectiva cristológica de Francisco é a da Carta aos Filipenses, que Paulo apóstolo recolheu de uma comuni-dade, é a perspectiva quenótica.

No Testamento, Francisco fala de intervenções de Deus em eventos pontuais: Ele o conduziu para o meio dos leprosos, deu-lhe irmãos, deu-lhe o Evangelho como forma de vida, revelou-lhe a sau-dação da paz. Mas expressa sua fé também numa maneira de Deus se fazer presente constantemente em sua vida: concedeu-lhe a graça de iniciar uma vida de penitência, deu-lhe fé nas igrejas (que encerram

(28)

a cruz) e nos sacerdotes. Estas últimas três referências também apre-sentam um caráter convocativo na direção do mistério quenótico de Deus. O fazer penitência tornando-se irmão dos leprosos, crer na cruz como símbolo da redenção pela doação amorosa e crer nos sa-cerdotes “pobrezinhos” que nos trazem presente a Eucaristia (apesar de seu estado escandaloso de vida) são convocações à minoridade, pois este é o jeito de ser de Deus. Deus acaba sendo reconhecido dentro do processo dinâmico do rebaixamento tanto do próprio Deus em si mesmo quanto nos seus representantes. Isto é, Francisco deu-se conta da lógica da misericórdia que existe em Deus ou, dizen-do de outra forma, que a misericórdia é o modizen-do de Deus ser.

De fato, o Testamento começa narrando seu processo de conver-são a partir do encontro com os leprosos. Estes, que a sociedade dizia estarem sem Deus, lhe revelaram o modo de Deus ser. Os leprosos lhe fornecem o óculos ou a chave para entender toda a sua trajetória espiritual e o próprio modo de ser de Deus. Por isso, depois passa a mencionar a descoberta da cruz como palavra reveladora da ação redentora de Deus em Cristo, que morre por haver contestado a es-trutura sócio-político-religiosa do seu tempo. Captou assim que sua experiência existencial feita com os leprosos na periferia das perife-rias sociais se assemelha, em grande parte, à experiência da cruz de Jesus Cristo. “Do sofrimento humano ao sofrimento divino”, diria R. Manselli. Vê aí estampada a “lógica e a beleza da misericórdia de Deus” (Maranesi).

Dos leprosos e da cruz, Francisco em seu Testamento passa a mencionar a fé nas igrejas e na cruz8, nos sacerdotes, na eucaristia, na palavra e nos teólogos. Estas últimas quatro referências estão na mesma lógica daquela dos leprosos e da cruz. O reconhecimento da 8. Convém dar-se conta de que no tempo de são Francisco, poucas igrejas conser-vavam hóstias consagradas. Apenas as catedrais ou igrejas importantes geralmente as mantinham. Nas demais, não havia nem o Santíssimo Sacramento nem ima-gens de santos. Nas igrejas mais ricas podia-se encontrar apenas imaima-gens de santos pintadas nas paredes. Nas igrejas menores e mais pobres costumava haver apenas uma cruz na abside, pendurada no teto sobre o altar.

(29)

presença e atuação de Deus nos leprosos e de sua atuação redentora na cruz lhe possibilitam crer na sua presença e atuação também nos “sacerdotes pobrezinhos”, justamente aqueles de pouca preparação teológica e provavelmente também de vida ambígua, como era o caso do Pe. Pedro da igreja de São Damião, com quem Francisco convi-veu. A misericórdia de Deus aceita fazer-se presente no sacramento da eucaristia, apesar de indignidade dos sacerdotes. Deus é capaz de se submeter à pobreza deles, exatamente porque é misericórdia. Do mesmo modo acontece com a eucaristia como renovação do mistério da encarnação (Ad 1). E semelhantemente com as palavras escritas (Bíblia) e com os teólogos. A estes porque ajudam a tirar a roupagem da Palavra, revelando seu espírito e vida de que é portadora.

Concluindo este item vale recordar que ter fé não é simplesmen-te dizer que se crê. Isto seria muito cômodo, mais ainda quando se trata de uma crença em um sistema doutrinário, geralmente sincro-nizado com o próprio modo de pensar e viver. A fé, como se pode deduzir da experiência de Francisco, significa crer no Deus de Jesus Cristo que se fez excluído com os excluídos para os integrar na socie-dade. Por um lado, é toda a realidade pessoal e cósmica que passa a ser vista diferentemente e, por outro, é o próprio Deus que se desvela como misericórdia, em primeiro lugar, para com o relegado.

5 a SubaltErnidadE-minoridadE como modo dE SEr num mundo violEnto

Um terceiro valor que o Testamento de Francisco quer eviden-ciar e deseja entregar explicitamente para seus irmãos às vésperas de sua morte é o da minoridade. O termo “minoridade”, além de haver assumido uma conotação cronológica (uma pessoa “de menor”, que ainda não alcançou a idade adulta), é facilmente concebida como dimensão subjetiva e intimista, algo que se passa apenas no interior da pessoa. Por isso, todos podem afirmar que se sentem “menores”, mesmo ocupando altos postos sociais. Em vista disso, preferimos co-nectar esse conceito com o termo de subalternidade para ver incluída

(30)

também a dimensão sócio-política, geralmente ausente. A associação com o termo “subalternidade” parece conseguir evitar essa distorção, pois o subalterno é necessariamente alguém em referência a outro alguém maior, que está acima, de quem está como que sob às ordens. O elemento relacional assim é mais concreto. Francisco ao empregar o termo ‘menor’ pensa exatamente nisso: ser submisso, estar abaixo dos outros – socialmente falando.

Já referimos que o Testamento testemunha a passagem do “mun-do da cavalaria”, que ocupava o topo da pirâmide social, para o “mundo da marginalização, dos leprosos” que aliás, segundo David Flood, nem sequer pertenciam à pirâmide social, estavam localiza-dos fora da pirâmide social, junto aos excomungalocaliza-dos civis, às bruxas, aos muçulmanos, aos judeus... A exclusão dos leprosos era simboli-zada até religiosamente. Como se sabe, uma vez identificada a lepra numa pessoa, um sacerdote ia na casa dessa pessoa, fazia a cerimônia das exéquias e, depois de ter colocado cinza na sua cabeça, condu-ziam-na a um leprosário, de onde não poderia jamais sair (como se tivesse sido enterrada). Perdia também todos os direitos sociais. Daí em diante seria considerado um morto-vivo. Francisco percorre exatamente essa trajetória existencial, não por estar contagiado pela lepra, mas movido pela compaixão pelos leprosos.

O Testamento lembra que essa experiência lhe descortinou novo horizonte. Revolucionou totalmente a compreensão de si, do mun-do, da religião e do próprio Deus. Francisco expressa tal mudança dizendo simplesmente que o amargo se converteu em “doçura de alma e de corpo”, expressão difícil de traduzir em conceitos, mas que certamente indica uma radical inversão de valores: da cavalaria à periferia, do centro à margem, ou, para ser mais preciso ainda, para além da margem.

No tempo em que Francisco redige seu Testamento, a fraterni-dade havia se tornado “Ordem”, tinha um lugar reconhecido dentro da sociedade e da Igreja. E esta, por sua vez, queria contar sempre mais com essa massa de homens capacitados para um trabalho de

(31)

evangelização, segundo suas perspectivas. Numericamente, a Ordem já havia ultrapassado com certeza a cifra de cinco mil frades, talvez estivesse próxima dos dez mil. Era uma força que a Igreja institucio-nal não podia deixar de valorizar e não querer que atuassem como seus missionários, é claro, segundo seus métodos e seus objetivos, nada respeitosos dos direitos, das crenças e da cultura dos outros. A experiência e a descoberta de um novo mundo vivida por Francisco e seus primeiros companheiros era desconhecida pela Igreja e até pela grande maioria dos integrantes da Ordem. Por isso às portas da morte, Francisco sente forte a urgência de recordar o percurso feito para que este fosse parâmetro para o futuro.

No texto da “Verdadeira Alegria”, provavelmente surgido dois anos antes, Francisco já descrevera as aspirações que grassavam na mente de frades: ser homens de ciência, estar revestidos do poder po-lítico e religioso, estar entre reis e príncipes, morar em casas cômodas e amplas... Confessam serem “tantos e tais que não precisam mais de uma pessoa simples e iletrada como Francisco”. Simplesmente o reenviam aos leprosos aos quais se assemelha. Então, é diante deste quadro interno da Ordem, desejosa de “um destacado lugar ao sol” na estrutura eclesial quanto diante da pressão da Igreja institucional, ciente de seu poder e que via os frades como um grande potencial de ação missionária, que Francisco recoloca sua história pessoal e da comunidade dos primeiros tempos para servir de parâmetro para as decisões de futuro, convicto de que essa história é fruto da ação direta de Deus, fruto de sua revelação misericordiosa.

A parte narrativa do Testamento que descreve o lugar social de sua fraternidade (vv. 16 - 23) parece convergir numa breve frase, ex-tremamente densa: “E éramos iletrados e submissos a todos” (v.19). Como constata Maranesi, parece que Francisco distorce a realidade para chamar a atenção para a subalternidade-minoridade. Sabe-se que Francisco sabia ler e escrever, logo não era iletrado; que Bernar-do de Quintavalle, senBernar-do muito rico, igualmente era letraBernar-do como todos os de sua classe social; que Pedro Cattani, provavelmente fosse

(32)

um magistrado, e assim por diante. Objetivamente então não eram iletrados e analfabetos. A história pareceria contradizer a afirmação de Francisco. Mas ele afirma serem assim justamente para ressaltar a nova condição assumida com sua passagem para o mundo dos ex-cluídos, daqueles que socialmente nada contavam: os leprosos. Esses não têm como fazer valer seus direitos, exigir reconhecimento quer de ordem econômica quer social. No entanto uma regra aprovada pelo papa já lhes dava esta condição. Sua condição de “irmãos me-nores” estava correndo perigo.

Para dar esse passo, Francisco não foi movido, como se de-preende da abertura do Testamento, por um fazer penitencial como programa ascético. Seus companheiros também não se associaram com esse intuito. Encantaram-se pelo modo de ser “irmão menor” de Francisco. Aliás, esse nome é todo um programa de vida, por-quanto “ninguém nasce irmão”, diria o teólogo belga André Wenin. Segundo este autor, o livro do Gênesis mostra que “irmão é preciso tornar-se”; não é algo conatural. E o caminho para esta meta é o da transdescendência, da condivisão da vida com os que estão mais em-baixo, formando unidade com eles, acrescentaria Francisco. Esta é a dinâmica da fraternidade, pois o poder – em todas as suas acepções – cria nos outros defesas e reservas. O poder faz com que o outro tam-bém se valha de seu poder e com isso é provocado a sair de sua rea-lidade profunda e a passar a agir desde a periferia de sua identidade verdadeira, impedindo o encontro que gera fraternidade. O poder, em última instância, é fator desencadeador de violência, de atitudes de defesa de si e de domínio sobre os outros. É empecilho para o estar-com, para o conviver, para o ser irmão. Daí a necessidade da “minoridade ou da subalternidade” que eleva e dignifica o outro.

O que se pretende enfatizar neste subtítulo da subalternidade-minoridade não é o caminho a percorrer para chegar à fraternidade que já foi contemplado no primeiro ponto (a opção pelos excluí-dos como caminho para a fraternidade). Aqui se deseja vislumbrar o modo de como permanecer na condição de irmão, embora os dois

(33)

aspectos não possam ser considerados separadamente. Francisco diz que eram “iletrados e submissos a todos”. Talvez, por “iletrados” qui-sesse entender a condição social estática de quem está à margem da sociedade, de quem não pertence a ela. Enquanto que por “submis-sos” pretendesse apontar para um modo social de portar-se, uma dinâmica de vida: o colocar-se debaixo dos outros, ou melhor, con-siderar sempre os outros como maiores.

A subalternidade-minoridade no Testamento aparece de duas maneiras: uma maneira é a forma de estar no mundo, quer dizer: desprovidos de bens materiais e com roupas iguais às usadas pelas pessoas desprovidas de posses, ganhando a vida como essas pessoas, pelo trabalho braçal (v. 16-17.24); e a outra, a de viver quais traba-lhadores manuais, à semelhança dos outros pobres que ganham o pão com o suor de seu rosto (Test 20). Segundo informações de Jac-ques Le Goff, por exemplo, a classe dos cavaleiros não fazia trabalhos braçais, assim como os monges eruditos. Era próprio da mentalidade platônica dos gregos e romanos considerar o trabalho manual/braçal próprio para os escravos e um empecilho para a contemplação e a re-flexão mental. Pois bem, os frades assumiram, nos primeiros tempos, exatamente este modus vivendi da classe social dos trabalhadores sem qualificação alguma. Era um modo de “estar entre gente comum e desprezada, entre pobres, fracos, enfermos, leprosos e os que men-digam junto aos caminhos” como estava estabelecido na regra que eles vinham paulatinamente desenvolvendo, a chamada Regra não Bulada (RnB 9,2).

A esse modo de ser mais estático da minoridade, que é o de pertencer a uma categoria social inferior, importa agregar o outro modo, mais dinâmico e relacional: o da “submissão a todos”, isto é, a subalternidade. Parece que o objetivo último de Francisco resida neste aspecto. O extremo rigor com que trata as questões de não solicitar privilégios a Roma (vv.25-26) e a da obediência ao guardião e da oração do ofício (vv. 27-33) estão evidentemente relacionadas com a subalternidade. Os privilégios solicitados a Roma teriam por

(34)

objetivo facilitar o trabalho pastoral quando algum bispo ou pároco se atravessasse em seu caminho. Os frades poderiam se impor apre-sentando a Carta do Papa, a autoridade suprema na terra, que os au-torizava a desenvolver sua tarefa onde quer que fosse. Francisco não admite essa concessão, mesmo se por razões claramente pastorais. O método para Francisco é tão importante quanto o conteúdo. Parece convencido de que o poder não é amigo da evangelização. Jesus Cris-to preferiu ser crucificado que impor-se na compreensão da teologia e da Bíblia, mesmo que estivesse absolutamente com a razão.

Ocorre que num ambiente de imposição pelo poder não acon-tece a adesão livre, por convencimento, do fiel à pessoa de Jesus Cristo. No capítulo da Regra não Bulada que trata da evangeli-zação dos sarracenos, redigido por Francisco ao retornar da expe-riência na Cruzada de Damieta, no Egito, afirma que o primeiro passo para a evangelização é a convivência com os infiéis e, somen-te “quando virem que agrada a Deus” anunciar sua Palavra (RnB 16,7). Mas assim não procedia a Igreja. Ela preferia ter a Bíblia numa mão e a espada na outra, como ocorreu na América Latina. Eram, portanto, duas maneiras de ver totalmente diversas. Muitos frades, sobremaneira os doutos, eram mais simpáticos ao modo de ver da Igreja institucional. Talvez a forma enérgica com que Fran-cisco defende sua perspectiva mostre o quão forte e grave sentia a divergência entre estas duas perspectivas e, ao mesmo tempo, o quanto ansiava que seu método fosse o do simples poder do Evan-gelho e jamais o evanEvan-gelho do poder.

Como alguém poderia dizer-se “irmão menor” e utilizar tal mé-todo do poder, próprio de quem é maior? Por isso, defender seu ponto de vista significava para Francisco defender um modo de ser revelado por Deus a ele e endossado pelo grupo primitivo. Era uma questão que dizia respeito ao núcleo da identidade específica. Fazen-do como a Igreja institucional propunha, já não poderiam ser cha-mados de “irmãos menores”. Soaria como palavra oca o que estava regulamentado na Regra não Bulada. “Éramos iletrados e submissos

(35)

a todos”9. Urgia recordar isso para que se tivesse esse valor como cri-tério de referência nas decisões do presente e do futuro.

Os mesmos princípios se podem aplicar às situações de não que-rer rezar o ofício conforme a Regra e a obedecer ao guardião. Para Francisco, obedecer ao guardião significava estar em comunhão com a fraternidade, assumir o projeto comum, elaborado com a partici-pação de todos. O contrário disso é arvorar-se como autossuficiente, ser alguém autônomo, que está assentado sobre o próprio poder. Essa postura é diametralmente oposta à de um “irmão menor” que “ingressou na casa da obediência” (Cf. RB 2,9), isto é, num espaço existencial onde o compromisso primeiro é responder às solicitações do Evangelho de Jesus Cristo e não seguir suas vontades próprias.

Em relação ao ofício, Francisco denuncia a mesma coisa. Ba-seado na Carta a Toda a Ordem, um texto de Francisco, emanado em torno de 1225, Maranesi pensa que o problema não era que frades quisessem rezar um ofício diferente do rezado em Roma. In-fluenciados pela mentalidade do tempo, desejavam torná-lo solene, a fim de que o povo fosse atraído pela “beleza” da oração dos frades. Assim se tornariam mais simpáticos elogiados pelo povo. Rivaliza-riam em beleza com o ofício de outras Ordens Religiosas como os beneditinos, os cistercienses, os cartuxos etc. Não há dúvidas de que isso caracterizaria uma forma de autoexaltação dos frades, postura da qual deveriam tomar distância, por contrariar medularmente a identidade de “irmão menor”.

Resumindo este ponto, pode-se dizer que para Francisco era fundamental, às portas da morte, defender a identidade de “irmão menor” que Deus lhe mostrara lá no início de seu processo de con-9. A mesma ideia é expressa na Regra não Bulada 7,1-2: “Todos os irmãos, em quaisquer lugares em que estiverem para servir e trabalhar em casa de outros, não sejam nem tesoureiros nem despenseiros nem tenham cargo de direção nas casas em que servem; nem aceitem algum ofício que provoque escândalo ou que cause dano à sua alma; mas sejam os menores e submissos a todos os que estão na mesma casa” (grifo nosso).

(36)

versão e que aflorou como nome identitário depois de vários anos de caminhada, conforme se pode deduzir da Compilação de Assis e do testemunho de Bugardo de Ursperg10. Essa identidade de “irmão menor” implica não apenas uma intenção subjetiva de não se im-por, mas igualmente tomar distância de toda a postura de poder que sempre ofende a fraternidade. No caso dos frades em 1226, época da redação do Testamento, eram fortemente tentados pelas circuns-tâncias a valer-se do poder, mesmo se por motivos aparentemente legítimos como o do trabalho evangelizador. Por isso a necessidade de precaver-se fortemente desta perspectiva da Igreja institucional e da sociedade, ambas calcadas na estrutura da grandeza e do poder.

6 o trabalho manual como mEio dE Solidarização ao pobrE

Não há duvidas de que para Francisco o trabalho é um valor, estreitamente ligado com os valores acima abordados. Dialogando com o presente da Ordem no momento em que redige o Testamen-to, Francisco, no crepúsculo de sua vida, faz memória do período áureo e exorta os irmãos para o futuro. E a ênfase com que o faz em relação ao tema do trabalho (“Quero que todos trabalhem... Quem não sabe, que aprenda...”) é reveladora do peso que ele atribuía a esta dimensão da vida.

O trabalho sempre foi o princípio organizador das sociedades, desde que se conhecem as culturas do ocidente. No tempo de Fran-cisco, cada segmento social tinha sua forma de trabalhar, de vestir, de morar. Aos pobres cabia o trabalho braçal, exercido sobretudo nos campos ou nas oficinas artesanais de azeite, vinho, queijos, como diaristas etc. A insegurança era elemento quase constitutivo do tra-balho do pobre, quer diante da possibilidade real de não encontrar 10. Compilação de Assis 101,9-13; para Bugardo de Urspergs: FF edição 2004 p. 1431/2.

(37)

trabalho no dia seguinte, quer em relação à remuneração pelo traba-lho realizado.

Com a chegada da industrialização, a condição social da família não conta mais. O trabalho passa a constituir as novas classes sociais, agora fundadas unicamente sobre o rendimento do trabalho, permi-tindo assim maior mobilidade social. Por isso, passa-se a trabalhar para galgar a estratos sociais superiores, para “ascender” na vida. Na atual conjuntura da sociedade pós-moderna, o trabalho continua sendo o eixo de organização da sociedade, o elemento determinante do modo de ser e viver. Conforme o tipo de trabalho exercido, se percebe determinado salário, se constrói moradia do mesmo nível, criam-se laços sociais dentro daquele âmbito social, enfim tudo é de-terminado pelo trabalho. Por isso, o trabalho é visto hoje justamente como meio ou recurso de ascensão social.

O movimento franciscano, desde os primórdios, fez do traba-lho um meio para concretizar a solidarização com os pequenos e os pobres (D. Flood). Por isso, talvez, no Testamento o trabalho seja a sequência lógica de uma das frases-eixo de todo o documento: “Éramos iletrados e submissos a todos” (v. 19). O trabalho seria a forma concreta de dizer “a que grupo social se pertence”. Funciona como modo social concreto de expressar a subalternidade. O traba-lho assemelhava os frades a todos os demais pobres. E, ao mesmo tempo, seria o caminho para conduzir aos pobres, para associar-se à sua insegurança de vida, para participar de sua real condição social.

Não parece oportuno começar , metodologicamente, a aborda-gem da questão do trabalho do ponto de vista franciscano, partindo da primeira frase do capítulo quinto da Regra Bulada –“os irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar” – porque ela já representa um distanciamento da impostação inicial em relação à visão do trabalho, encontrada na versão da Regra não Bulada. A frase representa a adap-tação a um novo contexto da Ordem, onde a atividade diretamente pastoral já havia assumido a prioridade. A própria formulação (“Os irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar...”) parece querer

(38)

respeitar algo importante que havia (o viver como os outros pobres), mas com o cuidado para não contrariar a nova orientação que se esta-va imprimindo na Ordem. Ela, proesta-vavelmente, já vivia de esmolas do povo em troca do trabalho pastoral que a Ordem lhe prestava.

De fato, no projeto original do movimento franciscano, presente na Regra não Bulada, no capítulo sete, se afirmava que “todos os irmãos que sabem trabalhar trabalhem”. No conjunto daquele capí-tulo estão presentes cinco orientações a respeito do trabalho: a) os irmãos trabalhavam como assalariados, assim como os outros pobres (5,1.7-8); b) podiam continuar exercendo a profissão exercida antes do ingresso (5,3); c) podiam ter as ferramentas necessárias para sua profissão (5,9); d) não poderiam receber dinheiro como pagamento pelo trabalho (5,7), e e) não podiam ocupar posições de mando ou de prestígio onde trabalhassem (5,1). É fácil perceber o que está por detrás destas normas: querer viver em paridade de condições às dos pobres trabalhadores, como iguais a eles.

Na mesma regra também se fala da esmola, mas relacionada ao não pagamento pelo trabalho realizado. No capítulo sete se prescreve que, “quando for necessário vão pedir esmola como os outros po-bres” (RnB 7, 8). Mas tal é afirmado logo depois de “E pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro” (RnB 7,7). Mais abaixo, a regra desenvolverá motivações para os frades es-molar. Quer dizer, a libertação da tentação do poder e da segurança dadas pelo dinheiro seria conseguida recorrendo à caridade. Isso, de fato, os tornava “como os outros pobres”, “alegres por estar no meio dos pobres” (RnB 9,2). A partir desta experiência de participação na vida dos pobres elaboraram um princípio teológico-social revo-lucionário: “a esmola é a herança e direito que se deve aos pobres, a qual Nosso Senhor Jesus Cristo conquistou para nós” (RnB 9,8). A própria formulação revela que eles se incluem entre os pobres. Em outras palavras: os ricos têm o dever de justiça de socorrer os neces-sitados, incluídos os frades. E ainda: “a necessidade desconhece lei” (RnB 9,16). Desse modo, a esmola tem duplo sentido para os frades: é um direito dos pobres de serem ajudados pelos mais abastados e,

(39)

ao mesmo tempo, um dever de justiça dos ricos ajudá-los, já que, estruturalmente, os pobres são pobres porque não lhes são reconhe-cidos os direitos.

Mas, já três anos antes da morte de Francisco, em 1223, com a Regra Bulada (capítulo cinco) se elimina toda a referência a trabalhos concretos. É que a Ordem já havia abandonado a grande maioria dos trabalhos braçais assalariados fora de casa, e junto às suas casas tam-bém não tinham terreno para hortas. Assim afirmando, “aos irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar”, permitia aos muitos frades que desenvolviam apenas trabalhos pastorais de não se sen-tirem constrangidos a retornar ao trabalho braçal, julgado por eles menos importante e urgente que o trabalho pastoral. A mentalidade monástica na Ordem fez acentuar a dimensão espiritual do trabalho: não prejudicar a oração que é a grande e verdadeira atividade dos frades! A esmola não é tratada junto com o trabalho, mas sim junto ao tema da não propriedade, no capítulo seguinte. Também não se dá mais razões para mendigar, porque os frades faziam outros “tra-balhos” mais nobres e em troca o povo, reconhecido, lhes retribuía com o necessário para viver. Retorna assim, novamente e de modo oficial, a distância entre a condição social real dos pobres e dos frades que “dizem ser pobres”, mas que não participam de sua real situação. No dizer de Grado Giovanni Merlo, deixaram de ser “frades pobres” para ser frades que “trabalham para os pobres”.

Em vista disso, o Testamento pode ser visto como uma exortação enfática para voltar a trabalhar como os outros pobres, em trabalhos “de laboritio” como diz a expressão latina de origem italiana de difícil tradução, mas que os estudiosos deduzem querer significar: trabalhar como diaristas em atividades braçais e rudes11. Com essa atitude, 11. Para Desbonnets, o “laboritio” latino seria a tradução do italiano “lavoraccio” que significa ou ‘trabalho penoso’ ou ‘trabalho diário ajustado’, mais comumente de tipo agrícola. Mas em Assis, o Pe. Cenci revelou um grande número de casos em que o termo “laboritium” designa trabalho de operário (Cf DESBONNETS, Th. Da intuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 37).

(40)

Francisco parece querer resgatar um valor determinante e de primei-ra gprimei-randeza que é o tprimei-rabalhar na condição dos pobres como caminho para viver a fraternidade com eles12. É uma fraternidade que parte da dimensão econômica e não apenas como atitude interior, subjetiva que pode esconder autojustificações. Francisco sente como mais de-cisiva esta postura pessoal e socioeconômica do que exercer ativida-des pastorais de prestígio. É o que parece reivindicar no Testamento, às vésperas da morte. A ênfase que ele dá a esse tema do trabalho13 é reveladora de seu inestimável e insubstituível valor, enquanto cami-nho para a fraternidade entre os irmãos e com os pobres, de quem assumiram tornarem-se irmãos menores.

7 o paz como valor-mEta

Este tema da paz é o último ponto a ser abordado neste ensaio, que quer retomar os valores básicos do franciscanismo, a partir do Testamento de Francisco de Assis. Ele coube numa única frase: “E como saudação, o Senhor me revelou que disséssemos: O Senhor te dê a paz” (v. 23). Porém, não obstante sua brevidade, esse tema da paz é o ponto de convergência do Testamento. É a última das me-mórias, também porque a paz será fruto da vivência dos valores aqui apontados anteriormente.

O primeiro biógrafo de Francisco recorda que ao começar uma pregação, o santo invocava a paz, dizendo: “O Senhor vos dê a paz” 12. Aqui valeria a pena recordar a observação de D. Flood de que o versículo oito do capítulo sete da RnB num manuscrito antigo que, segundo ele foi mudado por-que a realidade mudou, se encontra assim formulado: “... vão pedir esmola como os outros irmãos” e não como os outros pobres como é atualmente. Para aquele estudioso a mudança da realidade fez alterar o texto por se tornar incompreensível (Cf. FLOOD, D. Frei Francisco e o movimento franciscano. Petrópolis: Vozes-Cefepal, 1986, p. 55).

13. Esta maneira de se expressar “eu trabalhava com as minhas mãos e quero tra-balhar” (Test 20), usada por um cego, às vésperas da morte, só pode ser entendida como forma de enfatizar e não no seu sentido objetivo.

Riferimenti

Documenti correlati

To quantify the expression of MMP-2 in patients with COPD at different stages of disease severity, we exam- ined surgically resected specimens from the following four groups

In contrast to the InGaAs peak, the GaAs peak strongly blue- shifts with decreasing pillar size (dotted line), indicating increasing elastic relaxation of the thermal strain induced

Per la protezione del rischio di taglio da seghe a catena sono dispo- nibili sul mercato guanti antitaglio che devono essere conformi alla nor- ma UNI EN 381-7:2001. I guanti di

necessario sottolineare come nella storia evolutiva della meccanizzazione i vantaggi su larga scala siano stati costruiti attraverso la creazione di reti (commerciali e

Once engrafted into the tumour microenvironment, BM-MSCs establish a cross-talk with cancer cells which may promote the trans-differentiation of BM- MSCs towards different

We confidently constrained the position and LOS velocity of the galaxy centre, maximized the number and S/N of the spectra extracted from the pseudo-slits crossing the bar,

3) Sistemi contabili paralleli, nel qual caso contabilità finanziaria e generale costituiscono due sistemi autonomi ed indipendenti, tenuti separatamente e privi

Black soldier fly defatted meal as a dietary protein source for broiler chickens: Effects on carcass traits, breast meat quality and