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João Guimarães Rosa: la critica brasiliana, la ricezione in Italia e una proposta di ritraduzione del libro Primeiras Estórias.

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Academic year: 2021

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Corso di Laurea magistrale

in

Scienze del Linguaggio

Tesi di Laurea

João Guimarães Rosa: Uma retradução

literal para o italiano do livro Primeiras

Estórias

Relatrice

Professoressa Vanessa Castagna Correlatore

Professore Vincenzo Russo

Laureando

Diogo Figueira Colossi

Matricola 847669

Anno Accademico 2018 / 2019

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Índice

Introdução...2

I. João Guimarães Rosa: do Brasil à Itália ...5

I.1 O homem e a obra...5

I.2 A crítica brasileira: Antonio Candido e o surregionalismo ...7

I.3 A língua e a história...11

I.4 As interpretações esotérico-metafísicas ...13

I.5 A parábola Rosa...16

I.6 Guimarães Rosa e a recepção na Itália...19

I.7 Antoine Berman e as traduções etnocêntricas...22

I.8 Recepção e tradução...29

I.9 Rosa e as traduções para o italiano...35

I.10 Edoardo Bizzarri: o primeiro tradutor italiano de Guimarães Rosa...39

II. Língua e (re)tradução...48

II.1 A língua Guimarães Rosa...48

II.2 Os processos linguísticos e a contestação da língua comum...52

II.3 Primeiras Estórias e a tradução para o italiano de Giulia Lanciani...56

II.4 A retradução literal de Primeiras Estórias: significado e motivação...64

III. Primeiras Estórias: uma retradução literal...70

Le sponde della gioia...70

Famigerato...74

Sorôco, sua madre, sua figlia...78

La bambina di là...81

I fratelli Dagobé...85

La terza sponda del fiume...89

Pimperimpsichizia...93

Nessuno, Nessuna...100

Fatalità...106

Sequenza...110

Lo specchio...115

Nulla e la nostra condizione...120

Il cavallo che beveva birra...127

Un giovane molto bianco...132

Lune di miele...137

Partenza dell'audace navigatore...143

La Benefica...150

Sarabanda...157

Sostanza ...168

– Tarantone, mio padrone...173

Le cime...180

Conclusão...187

Bibliografia...189

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Introdução

O objetivo deste trabalho é propor a primeira retradução italiana do livro de contos Primeiras

Estórias do escritor brasileiro João Guimarães Rosa. A nova tradução será apresentada no terceiro

capítulo da tese, enquanto os dois primeiros conterão uma reflexão teórica propedêutica que tem como meta introduzir de forma sucinta o leitor italiano ao autor, à sua obra e a alguns de seus aspectos mais relevantes, como a sua interpretação revolucionária do tradicional gênero regionalista brasileiro e a chamada língua Guimarães Rosa. Analisaremos também as duas principais tendências exegéticas elaboradas pelos mais conceituados estudiosos brasileiros e a recepção do autor na Itália, onde daremos atenção especial ao lugar ocupado por Rosa no imaginário coletivo italiano e ao papel das traduções de seus livros na construção da sua imagem. Em seguida, examinaremos as práticas de tradução de seus dois primeiros tradutores italianos, Edoardo Bizzarri e Giulia Lanciani, a partir da análise de algumas passagens extraídas de suas respectivas versões. Ao final da reflexão, motiveremos a necessidade de retraduzir as obras do escritor para o italiano. A principal referência teórica adotada nesta tese e, em particular, na interpretação dos fenômenos encontrados nos processos receptivo e tradutivo de Guimarães Rosa será aquela proposta por Antoine Berman, a saber, as críticas à abordagem tradicional da tradução no mundo ocidental, que, segundo o estudioso francês, se baseiam no seguinte pressuposto: traduzir um texto é essencialmente restituir o seu sentido no idioma no qual será traduzido, em detrimento porém de sua lettre, ou seja da corporeidade linguística da obra, a qual na maior parte dos casos é abandonada na tradução.

O primeiro capítulo se subdivide em duas partes: na primeira parte serão apresentados alguns elementos fundamentais como os dados biográficos, o panorama histórico-literário, o conjunto das obras e as principais características do estilo do autor. Passaremos então a um resumo daquele que é o estado atual dos estudos críticos rosianos no Brasil e, em seguida, apresentaremos um esboço de uma possível chave interpretativa para a leitura do processo evolutivo das formas narrativas ao longo de todo o percurso literário do escritor. Na segunda parte, deslocaremos o nosso foco para a Itália, na tentativa de compreender melhor o processo cultural no qual Guimarães Rosa foi recebido e assimilado pelo público e pela crítica italiana. O estudo da recepção de um autor fora de suas próprias fronteiras nacionais não pode se separar do estudo de suas traduções, razão pela qual o primeiro capítulo desta tese terminará com uma análise da experiência tradutiva de Edoardo Bizzarri, o primeiro e mais famoso tradutor de Rosa na Itália. Enquanto na primeira parte do capítulo serão apresentados os mais importantes intérpretes do autor no Brasil e as duas principais correntes interpretativas ainda hoje prevalentes, isto é, por um lado, a abordagem de viés histórico

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inaugurada pelo grande crítico Antonio Candido, que identifica na obra de Rosa, e em particular no romance Grande Sertão: Veredas, uma releitura crítica da formação histórica brasileira, por outro aquela de inclinação esotérico-filosófico, que nos anos 90 experimentou seu período de maior floração e que afirma que, ao contrário, é o mito e o sagrado a prevalecerem sobre a história. Na segunda parte, tentaremos demonstrar, usando como ferramentas analíticas as categorias conceituais extraídas da reflexão tradutológica bermaniana presente no livro La traduction et la lettre ou

l'auberge du lointain, seja a recepção do autor na Itália, seja as traduções de suas obras para o

italiano apresentam um conjunto de características que podem ser explicadas pelo fenômeno que Berman define como uma prática de tradução etnocêntrica, ou seja a anexação dentro dos próprios limites culturais por parte da língua tradutora de todos aqueles elementos que pertencem a uma cultura estrangeira e diversa. De acordo com o estudioso francês, uma tradução etnocêntrica implica inevitavelmente a exclusão da voz do autor, bem como a supressão dos referentes culturais presentes na obra original, mas que são alheios à cultura receptora, e, como tal, é uma operação que nega o princípio da alteridade, isto é o mesmo princípio no qual se funda a necessidade do ato de traduzir.

O segundo capítulo deste trabalho iniciará com uma breve reflexão sobre aquela que é sem dúvidas a marca inconfundível do escritor: a sua língua. Inicialmente, refletiremos sobre qual seria a metodologia mais adequada para lidar com um tema tão complexo e com a ajuda de exemplos e explicações, apresentaremos os principais fenômenos linguísticos que constituem a língua Guimarães Rosa, a mesma que o crítico e poeta brasileiro Haroldo de Campos identificou como uma verdadeira contestação à língua comum. Em seguida, passaremos à apresentação do livro

Primeiras Estórias e ao seu significado no itinerário artístico rosiano, seguida de uma análise de

algumas passagens da tradução italiana de Giulia Lanciani, através de uma comparação com o texto original. Na análise da experiência tradutiva de Lanciani, tentaremos identificar e comentar as principais deformações textuais causadas por aqueles que, segundo Berman, são os três elementos que caracterizam a prática da maior parte dos tradutores no Ocidente, desde os antigos romanos até os dias atuais, ou seja etnocentrismo, hipertextualismo e platonismo. Será feita uma reflexão sobre o que poderia ser chamado de análise positiva da tradução, ou melhor, a busca crítica de princípios sobre os quais fundar uma nova abordagem à tradução, que, diferentemente da tradicional, deve ser ética e capaz de acolher na própria língua materna o outro e não mais através de uma sua forma domesticada. O segundo capítulo se conclui, finalmente, com uma discussão sobre o significado dos conceitos bermanianos de tradução literal (da lettre) e de retradução de uma obra literária, acompanhada pela declaração de intenções a partir da qual a nova proposta de tradução do texto rosiano foi construída, isto é, a apresentação da abordagem adotada e das principais estratégias

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utilizadas na retradução do livro Primeiras Estórias de Rosa.

Após os dois primeiros capítulos dedicados a aspectos prevalentemente teóricos, no terceiro e último apresentaremos finalmente aquele que é o objetivo final deste trabalho, ou seja, a proposta de uma nova tradução completa para o italiano de todos os 21 contos do livro Primeiras Estórias. Por se tratar de uma tese acadêmica e não de uma publicação editorial, preferiu-se não traduzir o título da obra e de apresentá-la com o seu nome original, acompanhado das palavras uma

retradução literal, enfatizando desta forma a especificidade da prática adotada na retradução e os

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1. João Guimarães Rosa: do Brasil à Itália

1.1 O homem e a obra

Não, não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.1

Este é o homem: João Guimarães Rosa: médico, embaixador e escritor brasileiro. Faleceu em 19 de novembro de 1967 no Rio de Janeiro, um ataque cardíaco misterioso e fulminante como um raio, três dias após a tão esperada cerimônia de inauguração na Academia Brasileira de Letras2, onde faria o seu famoso discurso de posse, o último documento escrito tornado público em vida, em que afirma, falando em memória do acadêmico, que havia ocupado anteriormente a cadeira número 2 daquela instituição, que as pessoas não morrem, ficam encantadas.3 E encantado Rosa nos deixou cinco obras publicadas, entre as mais impressionantes de toda a história da literatura portuguesa,

Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias

(1962), Tutaméia (1967); dois volumes póstumos, lançados alguns anos após o encantamento, Estas

Estórias (1969) e Ave Palavra (1971); o livro de poemas Magma, escrito em 1936, mas publicado

apenas em 1997, e o já mencionado Discurso de posse.

Cordisburgo, pequena cidade do sertão de Minas Gerais, primeira e última palavra do Discurso

de posse, terra natal, terra de bois, boiadeiros e fazendas, terra de manifestações míticas e históricas

de toda a sua obra, início e fim da grande aventura Rosa: "É que eu sou antes de mais nada este 'homem do sertão'; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito [...] que ele, esse 'sertão', está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.”.4 Nasceu em 27 de junho de 1908, primogênito de seis filhos, em uma família de

1 Em “Diálogo com Guimarães Rosa”, entrevista conduzida por Günter Lorenz em Genoa em janeiro de 1965, em ocasião do Congresso do congresso dos escritores latino-americanos e, em seguida, publicada no livro Diálogo com

a América Latina: panorama de uma literatura do futuro, E.P.U., São Paulo 1973, pp. 315-355. A entrevista pode

ser consultada no site: http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html.

2 Fundada em 20 de julho de 1897 no Rio de Janeiro, a Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma instituição cultural que se compõe de 40 membros efetivos e perpétuos, chamados imortais, e que tem como objetivo a promoção e a defesa da língua e da literatura brasileira.

3 Em Discurso de posse, publicado pela Academia Brasileira de Letras http://www.academia.org.br/academicos/joao-guimaraes-rosa/discurso-de-posse.

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pequenos comerciantes e pecuaristas, aquele que se tornaria um dos grandes mestres da prosa brasileira. Homem do sertão, sim, e, portanto, como costumava declarar, inevitavelmente um contador de histórias, um fabulista por natureza:

Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia.5

Sertão do norte de Minas Gerais, a pequena Cordisburgo, burgo do coração, que Rosa nunca deixou de amar e cuja seiva, rústica e vital, continuou a extrair ao longo de sua vida para escrever os seus livros, como evidenciam as numerosas cartas que ele enviara a seu pai em busca de novas histórias, antigos odores, cores que a memória não conseguia guardar, expressões locais, frescas, nomes de coisas, coisas, plantas, animais, as palavras ditas, ouvidas, autênticas, as palavras desse mundo, o mundo dessas palavras:

Da sua [carta], da outra, anterior, ri-me à vontade, com a história do homem que levou os cachorros para a fazenda, e ao fim de um ano voltou... latindo! Por falar nisso, pediria que o senhor me mandasse por escrito, quando tiver tempo, as palavras pronunciadas pelos homens que carregavam o defunto, aqueles que acabaram se sumindo com ele, na estrada, e que eram (Deus nos livre!) dois demônios. Lembra-se da história que o senhor contou? Também as palavras daquela outra história: do homem que apostou que iria buscar um osso no cemitério (– Esse não, que é do meu irmão! – etc.) Não me recordo das palavras que o homem disse, ao entregar o osso aos companheiros. Creio que ele disse: – “Está aqui, e corram, que o dono dele vem aí atrás! Está certo?6

Mas o sertão de Rosa não coincide com a sua Cordisburgo, e nem mesmo todo o perímetro do estado de Minas Gerais lhe será suficientemente amplo: as suas fronteiras geográficas elásticas se estendem por todo o vasto território do Brasil central na fronteira com a Bahia, Goiás; eles continuam, por quilômetros e quilômetros, como o próprio autor, que viajava na garupa de um cavalo de vilarejo em vilarejo para visitar seus pacientes no interior mineiro, quando trabalhava como médico, chegando até o Piauí, no norte, na Amazônia e além, terminando por confundir-se com as fronteiras de toda a nação brasileira; porque o sertão de Rosa não é aquele dos mapas geográficos, embora neste nasça, se nutra e se inspire, mas sim, como escreveu o grande poeta Carlos Drummond de Andrade em um poema publicado três dias após a morte do escritor, o Sertão

5 Ibid.

6 Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 163. (Ao pai, 26.3.1947).

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místico.7

Um imenso e fluido território místico, onde físico e metafísico se sobrepõem, transborda das margens regionais, do seu ventre de terra sertaneja, como um rio com fome de bocas e deságua em águas estrangeiras, em novas imensidões, onde se vêem vestígios de mundos conhecidos em formas desconhecidas, familiares e ao mesmo tempo estangeiras, e ao longo do caminho encontra enfim no ensaio pioneiro de Antonio Candido sobre o romance Grande Sertão: Veredas a sua síntese mais precisa e famosa: o Sertão é o Mundo.8 E foi este mundo novo, repentinamente revelado a todos,

surpreendentemente inventivo e poético, forjado por um homem que recusando o exotismo e a língua documental transformou radicalmente a matéria-prima local, a surpreender o grande crítico brasileiro.

1.2 A crítica brasileira: Antonio Candido e o surregionalismo

Considerava-se que a literatura brasileira já tinha saído disso [do regionalismo]. E no momento em que a crítica pensava mais ou menos isso surge um homem que, fechado hermeticamente dentro do universo do sertão, com uma exuberância verbal extraordinária, com aquilo que era considerado ruim na tradição brasileira que é a exuberância da linguagem, com aquilo que era considerado ruim que era o regionalismo, com aquilo que era considerado perigoso que era o pitoresco, parte de tudo isso e consegue fazer uma coisa inteiramente nova, consegue fazer uma ficção de tipo realmente universal, com todos os grandes problemas do homem.9

Como, então, abordar, e sobretudo, interpretar um escritor que realiza um verdadeiro prodígio literário, a fusão entre o local mais arcaico do sertão brasileiro e as grandes questões que afligem o homem de todos os tempos? Como ler um texto em que a matéria rural crua da terra nativa é incansavelmente elaborada com ferramentas linguísticas modernas e inovadoras, e a carne viva do real incessantemente manipulada por um demiurgo incansável? É sempre Candido a nos propor uma resposta:

Como se pode resolver esse paradoxo de um regionalismo que não é regionalismo, de uma universalidade que é a mais particular possível? Ele faz um tipo de livro que supera o regionalismo

7 Em “Um chamado João”, poema de Carlos Drummond de Andrade publicado pela primeira vez no jornal Correio

da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1967; republicada, em seguida, em Renard Perez, Em Memória de João Guimarães Rosa, Rio de Janeiro , José Olympio,1968; e nas edições sucessívas de Sagarana. Atualmente o

poema é parte integrante de cada um dos volumes que compõem a opera completa de Guimarães Rosa reeditada pela editora Nova Fronteira a partir de 2015.

8 Em Antonio Candido, “O Homem dos Avessos”, in Tese e Antítese, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964, p. 122. O estudo citado foi publicado pela primeira vez em 1957 na Revista Diálogo, n. 8, com o título “O Sertão e o Mundo”.

9 Trecho da entrevista concedida por Antonio Candido para o documentário Os nomes de Rosa (1997), citado em Candice Angélica Borborema de Carvalho, Antonio Candido e a fortuna crítica de Guimarães Rosa: a recepção de

Grande Sertão: Veredas, tese de doutorado, Unesp/Araraquara, a.a. 2016, Orientadora: Professora. Dra. Maria Célia

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através do regionalismo. Esse, do ponto de vista da composição literária, a meu ver é o paradoxo supremo. Tanto assim que me senti obrigado a criar uma nova categoria que é o transregionalismo ou surregionalismo. Assim como você fala em surrealismo, você pode falar, no caso de Guimarães Rosa, em surregionalismo.10

O importante estudo de Antonio Candido citado anteriormente, assim como aquele publicado anos depois, mas não por isso menos importante, As formas do falso11, de Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores especialistas brasileiras de Guimarães Rosa, teve dois méritos fundamentais na história da recepção do escritor no Brasil: foi o primeiro a identificar e a estabelecer de maneira sistemática, através de um olhar analítico-argumentativo, aquele conjunto de elementos compositivos que, com o tempo, se tornariam as pedras angulares dos estudos brasileiros sobre a obra de Rosa. O outro mérito, uma vez identificado esse sólido plano de trabalho, foi o de ter construído os alicerces de uma corrente interpretativa que foi acolhida e levada adiante por muitos dos principais estudiosos de Guimarães Rosa no Brasil e que, ainda hoje, é uma das linhas de pesquisa mais férteis no campo dos estudos rosianos.

Embora o objetivo deste trabalho não seja apresentar e analisar o estado da crítica rosiana no Brasil, uma tarefa enorme, se pensarmos na quantidade interminável de trabalhos publicados, parece-me, no entanto, que elaborar e comentar os dois pontos mencionados no parágrafo anterior possam ser de grande valia para a construção da estrada que nos levará àquele que é na realidade o objetivo central desta análise: motivar e propor uma nova tradução em italiano do livro Primeiras

Estórias de Guimarães Rosa.

As principais características formais12 identificadas como traços distintivos da prosa de Guimarães Rosa em relação a todas as outras no panorama literário brasileiro, e cuja identificação, como vimos, remonta às obras precursoras de Antonio Candido e Walnice Galvão, podem ser resumidas da seguinte forma: coexistência dialógica e conflituosa, em todas as dimensões da obra, entre o arcaico e o moderno, marcada por uma tensão contínua que não se resolve nunca; a construção de uma narrativa paradoxalmente regionalista e universal ao mesmo tempo, onde os grandes problemas do homem são enfrentados a partir de uma realidade muito particular, o que levanta inevitavelmente outra questão igualmente complexa: a relação entre erudito e popular. Um outro elemento fundamental é a presença de uma dialética fluida baseada na ambiguidade e na reversibilidade, que, reforçada pela dissimulação, destabiliza os lugares canônicos e estáveis do

10 Ibidem.

11 Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade em Grande sertão: veredas, São Paulo, Perspectiva, 1972. O livro é uma reelaboração da tese de doutorado homônima concluída em 1970.

12 Nesta tese o termo formal é utilizado como o concebiam os formalistas russos, de acordo com a interpretação que eles deram à noção de forma: não mais em contraposição ao conteúdo, mas como princípio de organização de uma obra de arte; cfr, Giovanni Bottiroli, Che cos'è la teoria della letteratura, Fondamenti e problemi, Torino, Piccola biblioteca Einaudi, 2006 pp. 37-38.

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Bem e do Mal, mistura com desembaraço o simbólico e o material, e provoca, consequentemente, a suspensão de todos os julgamentos morais; no caso de Grande Sertão: Veredas, ambiguidade e reversibilidade foram identificadas como os dois grandes princípios organizadores do romance; e, finalmente, o que para muitos é a marca máxima e inconfundível de Rosa, a sua língua: a invenção de uma nova língua, que não tem precedentes na literatura ou na história da língua portuguesa, uma língua selvagem, indomável e oralizante, que é de todos e de ninguém, dialetal e culta, familiar e estrangeira, e que produz um texto difícil, enigmático, muitas vezes impenetrável, mas também irônico e sentimental, no qual todos os elementos narrativos da obra do escritor se fundem e se transfiguram.

Quem lida com literatura sabe que uma crítica que deseje contribuir para a compreensão e interpretação das obras de um escritor não pode se limitar a identificar as principais características de seu estilo. O crítico deve, ao contrário, propor uma leitura que explique, ou pelo menos tente explicar, como essas características se articulam entre si na composição do que é o coração da produção literária, isto é o texto. Mas o crítico, se quiser fazer um bom trabalho, tem o dever de conhecer muito bem o contexto literário em que se encontram inseridos os trabalhos que pretende estudar, sob pena de negligenciar um dos aspectos fundamentais dos estudos sobre literatura, que é precisamente a relação, seja ela de ruptura ou de continuidade, entre um escritor e a tradição à qual ele pertence. É com esse espírito, portanto, que abordaremos agora o segundo ponto de nossa reflexão: a linha interpretativa inaugurada por Antonio Candido e levada adiante por muitos estudiosos da obra de Guimarães Rosa.

Na linha de interpretação elaborada a partir de seu estudo sobre o romance Grande Sertão:

Veredas Candido destaca a centralidade da dimensão histórica nas obras de Rosa, argumentando que

apenas a partir de uma operação complexa e inovadora de reconstrução crítica da experiência histórica brasileira, o escritor conseguiu alcançar sua inquestionável universalidade. A famosa fórmula: o Sertão é o Mundo não deve, portanto, ser interpretada como se o sertão fosse igual ou equivalente ao mundo ou a cada uma de suas partes, uma espécie de não-lugar que pode assumir livremente a forma que se lhe deseja dar; mas, ao contrário, como um espaço dotado de uma identidade reconhecível e compartilhada, com características sociais e geográficas específicas, colocadas dentro de uma realidade histórica determinada e irrepetível, e é exatamente nesse sentido que o autor a explora, como um profundo conhecedor desta realidade, e a transforma em um tema literário de calibre universal. E para realizar esse processo de transfiguração do real que leva à superação do realismo e estabelece os dilemas de todo homem a partir do homem local, Guimarães Rosa faz uso de recursos linguísticos e de composição que são completamente modernos. Este último aspecto será analisado com mais detalhes no capítulo dedicado à língua de Rosa.

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Esta tese pressupõe evidentemente que o escritor tenha feito uma releitura crítica da tradição literária brasileira, em particular do realismo social das primeiras décadas do século XX e também da literatura regionalista, que na época de Rosa já estava em declínio. De fato, são numerosos e incontestáveis os elementos que atestam um afastamento dos princípios caros à prosa realista da época, dentre os quais podemos mencionar a rejeição de uma concepção determinista do homem, o uso de técnicas narrativas antinaturalistas, a presença de artifícios expressivos não realistas etc. Além disso, como vimos, a obra de Rosa é o único exemplo na história literária brasileira do que Candido definiu como super-regionalismo, ou melhor a superação do regionalismo através do regionalismo. No entanto, é com Os Sertões13 do escritor e jornalista carioca Euclides da Cunha que Rosa instaura um diálogo crítico mais profícuo. Este livro, publicado em 1902 e que pode ser lido como um trabalho de sociologia, geografia, história, além de uma obra literária, trata da Guerra de Canudos (1896 - 1897), um conflito bélico que terminou com o extermínio da população local por mãos das tropas do governo republicano e a destruição de sua pequena comunidade. Mais do que os eventos históricos, devemos nos concentrar aqui na maneira como o episódio trágico é narrado, se quisermos entender melhor a virada rosiana. Euclides da Cunha, enviado a Canudos como jornalista, narra a guerra e descreve o ambiente e os homens que conhece de acordo com uma perspectiva positivista, histórica e filosófica, muito popular em seu tempo, e usa uma linguagem que é ao mesmo tempo erudita e técnica. Seu olhar científico e determinista sobre o sertão produz uma narrativa que considera a suposta objetividade e o rigor do método das ciências naturais como o único instrumento de interpretação da realidade e, inevitavelmente, acaba apresentando essa região rural do Brasil recôndito como uma terra de pessoas bárbaras e incivilizadas, uma verdadeira ameaça ao progresso do país. E aos homens daquela terra, os sertanejos, descritos a certa altura como uma sub-raça de brasileiros, em um trabalho em que os diálogos são raros, quase nunca se dá o direito de se pronunciar. O livro de Euclides da Cunha, considerado um dos maiores trabalhos da história cultural do Brasil e que teve um papel preponderante na formação do pensamento nacional brasileiro, pelo menos na primeira metade do século XX, moldou no imaginário coletivo do país uma imagem negativa e discriminatória da terra tão amada por Guimarães Rosa. O sertão passa a ser o símbolo do atraso nacional aos olhos da população urbana.

A resposta de Rosa é surpreendente porque é uma reação completa à obra de Euclides da Cunha: o escritor desconstrói a rígida argumentação positivista euclidiana através de uma literatura que tem como base uma dialética fluida, onde a realidade é interpretada como um complexo e quase sempre contraditório sistema ontológico e fenomenológico, no qual elementos aparentemente antitéticos

13 Desde a sua publicação até hoje esta obra mereceu numerosas edições. Entre as mais recentes, a mais rigorosa e importante é aquela editada por Ateliê Editorial, organizada por Leopoldo M. Bernucci, e que em 2018 chegou à quinta edição.

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como progresso e sertão revelam-se, pelo contrário, em íntima relação simbiótica entre si, tornando problemática a contraposição maniqueista entre barbárie e civilização. A operação rosiana não se limita, no entanto, à elaboração de um texto que desconstrói os pressupostos filosóficos sobre os quais repousa a arte naturalista, mas também altera as estruturas composicionais da prosa de seu tempo, transformando-as e criando uma narrativa surpreendentemente original que dá ao sertanejo mutilado e insípido de Euclides da Cunha o bem mais precioso que lhe fora negado: a sua voz. Ressuscitado, vivo e são, trazido de volta à sua devida complexidade ontológica, o sertão pode finalmente contar em primeira mão a sua história e a história de sua terra em sua língua oral, rústica, arcaica, mas a única capaz de representar o seu mundo, e que magistralmente transfigurada por Rosa se torna a língua do texto. Dando continuidade a essa leitura, o crítico Willi Bolle, um dos estudiosos de Guimarães Rosa mais respeitados da atualidade, desenvolve ainda mais os caminhos hermenêuticos abertos por Candido e Galvão e afirma em seu estudo grandesertão.br14 que o romance Grande Sertão: Veredas pode ser lido então como uma reescrita crítica de Os Sertões por Euclides da Cunha. Mas não apenas: para Bolle, a obra-prima de Rosa deve ser interpretada como o grande romance de formação do Brasil, como uma espécie de reinvenção do gênero Bildungsroman, que agora, no entanto, não se refere apenas à evolução de um indivíduo, como era por exemplo na cultura alemã, mas é estendido a uma inteira nação. Esta tese tem o mérito de fortalecer ainda mais o valor central da historicidade como elemento constitutivo da literatura de Guimarães Rosa e inclui ainda o seu famoso romance entre as grandes interpretações ou invenções do Brasil, em pé de igualdade com aquela de pensadores importantes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e o mesmo Antonio Candido.

1.3 A língua e a história

Um outro aspecto sobre o qual é necessário refletir, especialmente se tivermos em mente que a maior contribuição deste trabalho consiste na retradução para o italiano de uma obra de Rosa, é a maneira pela qual a atenção colocada pelo autor em elementos socioculturais se manifesta em seu idioma. Como vimos, alguns estudiosos destacaram o fato de que em suas obras Guimarães Rosa faz uma releitura crítica da história brasileira e, em particular, de narrativas que explicam e legitimam essa história. Assim, Bolle, por exemplo, encontra no Grande Sertão: Veredas a denúncia das enormes desigualdades sociais no país e, ao mesmo tempo, uma crítica ao processo de modernização que deveria ter trazido progresso ao Brasil, erradicando elementos culturais e

14 Willi Bolle, grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, São Paulo, Editora 34 | Livraria Duas Cidades, 2004.

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materiais ligados a universos arcaicos como aquele do sertão. No entanto, é na linguagem forjada por Rosa que esta operação crítica encontra sua realização mais completa.

A língua Guimarães Rosa, como é chamada por alguns estudiosos, é o espaço por excelência da elaboração de seu pensamento crítico sobre a realidade brasileira e onde encontram refúgio justamente aqueles elementos simbólicos que o Brasil da primeira metade do século XX, em pleno processo de modernização, parecia desprezar. É o caso, por exemplo, da presença conspícua de arcaísmos nas obras do escritor. Nesse sentido, Rosa realiza um verdadeiro trabalho de arqueologia linguística, revivendo numerosos fósseis lexicais da língua portuguesa. No entanto, não é uma simples demonstração da própria erudição, como o próprio autor explica em uma entrevista: “[...]eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido.”15. De fato, em regiões remotas e

mais isoladas de grandes centros urbanos, as línguas são menos expostas a influências externas e tendem, como resultado, a preservar formas e estruturas mais conservadoras por um longo tempo. Por isso, no sertão de Minas Gerais na época de Rosa era possível ouvir palavras e construções linguísticas hoje consideradas arcaicas e completamente ignoradas pelo resto do país. Assim, oferecendo amparo a uma língua tão maltratada e tão desconhecida quanto aquela do sertanejo, o escritor acolhe e preserva em sua língua um mundo rural a ele tão caro, dotado de história e valores próprios, um mundo que muitos queriam eliminar, ou pelo menos ignorar, como um símbolo de atraso e um obstáculo ao desenvolvimento nacional. No entanto, isso não deve nos autorizar a conceber o autor como um homem nostálgico, em oposição à modernidade e ao progresso tecnológico. Sua crítica é de fato dialética e, em vez de simplesmente apoiar os defensores da cultura arcaica, Rosa tenta demonstrar como o progresso tecnológico e o atraso cultural não são, na verdade, dois polos opostos mutuamente exclusivos, como afirmava o pensamento positivista, mas dois elementos da realidade que estão entre si em uma relação de interdependência. Ou melhor, usando uma imagem muito conhecida dos estudos socioeconômicos no estilo marxista, progresso e atraso são os dois lados da mesma moeda. E a demonstrar melhor do que qualquer outra forma o caráter dialético de sua interpretação do Brasil é sempre a língua inventiva de Rosa, que recupera arcaísmos encontrados no mundo rural, e, aproveitando ao máximo as suas virtualidades, os transforma radicalmente com o uso de meios expressivos de vanguarda e os utiliza na criação de uma das obras mais modernas de seu tempo.

A língua de Rosa é um tema muito vasto e complexo, que tem sido muito debatido ao longo dos

15 Entrevista concedida em 24 de novembro de 1966 a Arnaldo Saraiva, para o jornal português Diário de Notícias:

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anos e que claramente merece uma análise muito mais detalhada e aprofundada do que foi feito aqui. O que tentamos mostrar no parágrafo anterior, isto é, que o caráter dialético da releitura crítica do processo de formação histórica do Brasil presente na obra rosiana se manifesta não apenas na trama, mas sobretudo na língua do texto, é apenas um exemplo, entre muitos outros possíveis, que comprova a especificidade e inventividade da linguagem do autor. E, embora neste momento o meu objetivo não seja examinar a língua rosiana, algumas de suas características mais salientes, como a presença de numerosos neologismos, nomes de plantas, animais exóticos ou raros, o uso de acentos em palavras que de acordo com a gramática não deveriam ser acentuadas, o uso do subjuntivo de maneira pessoal e não prevista na norma, bem como o já mencionado caso dos arcaísmos, serão examinados no último capítulo deste trabalho, no qual também apresentarei e explicarei a abordagem adotada na tradução das Primeiras Estórias para o italiano e a necessidade dessa retradução.

1.4 As interpretações esotérico-metafísicas

Como bem explica João Roberto Maia16 em um ensaio sobre o atual estado da crítica sobre

Guimarães Rosa, a linha de interpretação histórica, ou melhor, aquela que encontra nos próprios fundamentos da narrativa do escritor uma releitura original e dialética da história do Brasil, inaugurada por Antonio Candido e retomada e retrabalhada por Walnice Galvão e Willi Bolle, bem como por outros estudiosos importantes, que não serão levados em consideração em meu trabalho, apenas por uma questão de concisão, como Luiz Roncari, Davi Arrigucci Jr. e José Antonio Pasta Jr., apenas para citar alguns entre os mais conhecidos, não é contudo a única perspectiva explorada pelos estudiosos.

Desde a publicação de seus primeiros livros, os elementos místicos e religiosos presentes na obra de Rosa sempre despertaram interesse e curiosidade em críticos e leitores. Em Sagarana (1946), o primeiro livro do autor, uma coleção de histórias longas, os críticos identificaram na realização de caminhos iniciáticos como a única maneira possível de transformar a realidade do homem, os pressupostos místicos e religiosos de inspiração evangélica no mundo em que se baseiam o mundo e a psicologia de seus personagens17. Em Grande Sertão: Veredas é sempre a

matriz metafísica da Weltanschauung de Rosa que produz um dos seus dispositivos narrativos mais

16 João Roberto Maia, “Sobre a crítica de Guimarães Rosa”, in Espéculo. Revista de estudios literarios, n. 37, 2007:

https://webs.ucm.es/info/especulo/numero37/guimaro.html.

17 Cfr. Vera Lúcia de Oliveira Storie nella storia. Le parabole di Guimarães Rosa, collana di studi e testi, Lecce, Pensa Multimediale, 2006.

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famosos e bem-sucedidos: o pacto com o diabo. Riobaldo, um homem do sertão e protagonista do romance, teria feito um pacto com o diabo, adquirindo a força espiritual necessária para se tornar o líder dos jagunços e derrotar Hermógenes, assassino de Joca Ramiro e encarnação do mal. Além das inevitáveis analogias com Faust de Goethe, alguns estudiosos identificaram o fato de que a combater o mal fosse o próprio mal como um sinal de mudança profunda no sistema ontológico do autor, que a partir de então parecia não conceber mais o bem e o mal de acordo com uma lógica de oposição entre opostos, como na maioria das primeiras estórias, mas em uma relação dialética complexa e dinâmica entre eles18. Exemplos como esses, que atestam a importância do papel da

religiosidade, em particular aquela mais popular, e da metafísica, sempre entendidos de maneira totalmente pessoal, na construção do universo narrativo dos livros, são abundantes e podem ser encontrados ao longo de toda obra rosiana. E a confirmar essa dimensão da sua literatura são as declarações de Guimarães Rosa, que se empenhava em enfatizar a primazia desses aspectos em detrimento de outros: “não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde Inneres und Ausseres sind nicht mehr zu trennen19 […] No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por isso ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua.20” Essa leitura que

tende a abolir a historicidade da própria obra foi aceita e desenvolvida em muitos estudos que, embora não formem um todo homogêneo, podem ser reunidos sob o título de interpretações esotérico-metafísicas21. Neles, a dimensão histórica é negligenciada ou mesmo ignorada, de modo

que o rústico sertanejo, despido de suas especificidades socioculturais, é interpretado no sentido de um arquétipo do homem primitivo que encarna a condição humana universal. E o sertão, mais do que um local geograficamente determinado, torna-se um espaço arcaico favorável às manifestações do sagrado. Embora essa perspectiva tenha conhecido o momento de maior florescimento nos anos 90 com os trabalhos de Kathrin Rosenfield (Descaminhos do demo), Francis Utéza (João

Guimarães Rosa: metafísica do Grande sertão) e Heloísa Vilhena de Araújo (O roteiro de Deus. Dois estudos sobre Guimarães Rosa)22, a encontramos já no texto Grande sertão e Dr. Faustus, de

1966, de um discípulo de Antonio Candido, o importante crítico de orientação marxista Roberto Schwarz, que afirma que na obra de Rosa “a História quase não tem lugar”23.

Parece-me, todavia, problemática uma leitura que não vê a história brasileira como um traço constitutivo do universo ficcional de Guimarães Rosa. Primeiro porque, embora seja verdade que

18 Cfr. Vera Lúcia de Oliveira Storie nella storia. Le parabole di Guimarães Rosa, op. cit. 19 O interior e o exterior não podem mais se separar. Citado em alemão por Guimarães Rosa. 20 Guimarães Rosa, entrevista concedida a Günter Lorenz, op. cit.

21 Cfr. João Maia, op. cit. 22 Cfr. Ibidem.

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ouvir atentamente a voz de um autor que reflete sobre a própria obra pode contribuir para uma sua compreensão mais profunda, por outro lado, no entanto, como Maia lembra bem, “Nós que estudamos literatura sabemos que a intenção do autor pode ser levada em consideração sempre que possível, mas a atenção às mediações exigida pelo trabalho exegético recomenda que não façamos da perspectiva autoral a última instância analítica.”24 Desta forma, uma interpretação da produção

rosiana baseada simultaneamente na intentio auctoris e em dados textuais corre o risco de ler de maneira muito simplista textos que, ao contrário, podem ocultar relações complexas com a realidade extraliterária, porque busca nos mesmos uma justificação ou uma confirmação da vontade do autor. Também vale lembrar que no caso de Guimarães Rosa essa abordagem é particularmente arriscada, pois o autor costumava fazer declarações ambíguas e contraditórias sobre seu trabalho.

A outra limitação da chamada linha esotérico-metafísica, como coloca a estudiosa Ana Paula Pacheco, é "o perigo de uma regressão mítica”25 na obra de Guimarães Rosa, isto é, uma leitura que,

negligenciando os aspectos históricos e sociais, identifica no atraso, como permanente arcaico, onde por arcaico entendemos o lugar favorável à manifestação do sagrado, um mito positivo livre de contradições e vínculos com a história. Desse modo, teríamos um texto construído a partir de um mito, que, por sua vez, nega a história e não pode mais ser compreendido nela, pois se encontra refugiado na atemporalidade absoluta de si mesmo. Em outras palavras, o autor teria feito uma exumação literária de mitos primordiais, a fim de combater a modernidade e propor um retorno ao mundo arcaico como a única alternativa e caminho de salvação para o homem. Essa perspectiva empobrece, no entanto, a compreensão das relações entre o arcaico e o moderno, um dos aspectos mais articulados e profícuos na língua e na obra rosiana, porque não nos permite ver o atraso e a modernidade como discursos opostos que se nutrem mutuamente no interior de um sistema narrativo dialético em que as contradições não são resolvidas. Adotar, portanto, essa interpretação seria equivalente, em última análise, a aceitar que Guimarães Rosa fosse um místico com talentos literários e seus livros textos esotéricos ambientados no sertão de Minas Gerais. Uma redução inaceitável. Por outro lado, não podemos sequer negar o papel fundamental da dimensão mítica na poética do autor, sob pena de endossar uma leitura igualmente redutora na qual, pelo contrário, é a história que mata o mito. É por isso que, apesar de me sentir mais próximo da análise que historiciza a obra do escritor, prefiro me colocar entre aqueles que, em vez disso, apoiam a necessidade de superar a polarização entre abordagens míticas e históricas, tentando assim construir um caminho analítico no qual o mito de Rosa é entendido partindo de suas múltiplas relações com elementos e fenômenos típicos do processo histórico brasileiro, em outras palavras, trazer a

24 João Maia, Sobre a crítica de Guimarães Rosa , op. cit.

25 Ana Paula Pacheco, “História, psique e metalinguagem em Guimarães Rosa”, in Cult – Revista brasileira de

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mitologia de volta ao espaço da história.26

1.5 A parábola Rosa

Antes de concluir o primeiro capítulo deste trabalho, gostaria de chamar a atenção para um aspecto da obra de Rosa pouco estudado: a evolução das formas narrativas na produção do escritor. O escasso interesse colocado neste tema se deve, em grande parte, ao fato que a maior parte dos estudos dedicados ao autor, tanto no Brasil quanto no exterior, como veremos no próximo capítulo, não se concentra em toda a sua produção, mas em um único texto, o romance Grande Sertão:

Veredas. A indiscutível monumentalidade e originalidade deste livro, considerada pela crítica

obra-prima absoluta e ponto mais alto da carreira do escritor, fez com que que as suas outras obras, em particular aquelas posteriores, não merecessem a devida atenção dos estudiosos. Com raras exceções, eles parecem ter identificado nos dois primeiros livros publicados, Sagarana e Corpo de

Baile, as etapas preparatórias de uma jornada literária ascendente que culminará no Grande Sertão,

onde o pico expressivo é atingido e, em seguida, nos dois últimos, Primeiras Estórias e Tutaméia, a simples repetição ou até mesmo a involução da ficção rosiana27.

Um outro fator que poderia explicar uma certa negligência por parte da crítica ao propor uma visão geral do trabalho de Rosa é a relação de relativa continuidade no substrato narrativo no qual seus textos se constroem. O sertão, em toda a sua complexidade ontológica e fenomenológica, com seus homens, animais e plantas, permeia toda a poética rosiana e é o universo ficcional de cada um de seus livros, o que foi interpretado como uma confirmação da tese que vê no Grande Sertão:

Veredas a expressão mais completa desse mundo arcaico e, conseqüentemente, o trabalho que

resume, melhor do que qualquer outro, a experiência literária do autor. Essa posição causou danos consideráveis à compreensão geral do fenômeno Guimarães Rosa, pois se baseia em uma leitura que, confundindo valor estético e análise hermenêutica, acaba enfatizando um único trabalho e negligenciando os outros, que, embora sejam considerados relevantes, como portadores da marca inconfundível do artista, são relegados a uma dimensão secundária em comparação com o seu trabalho mais importante.

O que eu gostaria de fazer brevemente, portanto, é tentar traçar um fio condutor que ligue todas as cinco obras publicadas em vida pelo escritor, independentemente do valor literário que os críticos

26 Willi Bolle, um dos mais importantes representantes atuais desta interpretação, se apropria de um itinerário hermenêutico de inspiração benjaminiana, onde tenta no entanto não mais dissolver a mitologia no espaço da história, como desejava Walter Benjamin, mas de analisá-la neste espaço; cfr. Willi Bolle, op. cit.

27 Cfr. Vera Novis, Tutaméia: engenho e arte, São Paulo, Perspectiva, Edusp, 1989, citado em Adilson dos Santos, “A 'despedidosa dose' de João Guimarães Rosa”, in Revista Investigações, n. 1, 2008, pp. 75-107, pp. 76-77.

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atribuíram a cada uma delas, propondo uma leitura que analise a evolução das formas narrativas ao longo do itinerário criativo do autor. Essa análise não pretende, no entanto, estudar cada uma dessas formas e a maneira pela qual o escritor as criou, uma tarefa árdua, que mereceria um estudo amplo e articulado, se pensarmos, por exemplo, na natureza predominantemente híbrida de suas aventuras narrativas, nas quais vemos frequentemente desaparecer até mesmo a mais antiga e defendida das fronteiras da literatura, aquela entre a poesia e a prosa. O que queremos é simplesmente destacar o que chamo de 'trajetória parabólica da ficção rosiana', que aqui, no entanto, não deve ser interpretada como a figura geométrica que melhor representa uma jornada literária em cujo ponto mais alto, que coincidiria com o vértice da parábola, colocamos a obra mais valiosa, e nos outros pontos, a depender se se encontram antes ou depois desta última, os livros anteriores e posteriores, mas sim como a imagem que melhor interpreta o resultado geral de um processo contínuo e incansável de experimentação de formas narrativas, em que o vértice da curva representa apenas um das tantas possíveis.

Em entrevista a um canal de televisão alemão, poucos dias após a publicação do livro Primeiras

Estórias, Guimarães Rosa, quando perguntado por que decidiu passar da ficção longa, ou seja o

romance, às histórias breves, ele respondeu que "para o artista toda limitação é estimulante”28

Embora não seja aconselhável, como vimos anteriormente, usar a perspectiva autoral como parâmetro para uma análise hermenêutica, que deve, como tal, seguir o exame do texto literário, e não de como ele aparece aos olhos do autor, a declaração de Rosa nos fornece, no entanto, um caminho importante, que obviamente terá que ser confirmado na prática para que tenha um valor exegético efetivo, de como a totalidade do seu percurso artístico possa ser interpretada a partir da diversidade de extensões das formas narrativas em que ele se aventurou e, ao mesmo tempo, sugere que essa diversidade, ou a mudança contínua na extensão dos textos, foi um fator decisivo na evolução de seu caminho criativo. De fato, ao contrário do que se pensava no momento de sua publicação, o livro Primeiras Estórias não era uma simples pausa antes de um novo texto narrativo de grande extensão, com a retomada, portanto, de uma forma já experimentada anteriormente, mas, como demonstra o livro sucessivo, Tutaméia, composto por histórias ainda mais breves, um ponto de inflexão meditado em sua obra e que marcou a passagem, revelada no final das contas sem retorno, das mais extensas composições àquelas mais breves e concisas, como se Rosa, não querendo renunciar ao seu universo ficcional de matriz sertaneja, à qual estava muito ligado, tivesse encontrado na extensão dos textos um limite a ser imposto a si mesmo, que funcionaria como um estímulo, a fim de testar as suas habilidades narrativas e seus experimentos linguísticos.

28 Entrevista concedida a Walter Höllerer para um canal televisivo alemão em Berlim no ano de 1962. As imagens originais da entrevista se encontram no documentário Outro Sertão, dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, e podem ser visualizadas neste link https://www.youtube.com/watch?v=VmqzHLii1CM.

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Veremos agora, examinando os cinco livros publicados na vida pelo escritor, que a imagem da parábola se revelará de maneira natural, se apenas fixarmos o olhar nas diferentes extensões narrativas que ele praticou ao longo de sua produção. Sagarana, livro inaugural de João Guimarães Rosa, foi publicado em 1946 e é composto por nove histórias longas. Dez anos depois, a apenas quatro mese de distância um do outro, dois novos volumes são lançados: Corpo de Baile, em janeiro de 1956, e Grande Sertão: Veredas, em maio do mesmo ano. O primeiro, com mais de 800 páginas e originalmente dividido em dois volumes29, consiste em uma coleção de sete novelas; o segundo, a

sua obra mais conhecida, um romance de 600 páginas sem divisão de capítulos. Depois, em 1962, ele publicou seu quarto livro, Primeiras Estórias, uma coleção de 21 contos, ou melhor, estórias30,

como Guimarães Rosa preferia chamá-los. E, finalmente, em 1967, quatro meses antes de sua morte, a sua última obra foi publicada, Tutaméia (Terceiras Estórias), composta por 40 minicontos31.

Como podemos ver, contando a partir do primeiro livro, a duração das histórias aumenta, à medida que sua quantidade diminui até atingirmos o ponto de duração máxima, ou o vértice da parábola, que coincide com o romance Grande Sertão, onde há uma história única e muito longa; em seguida ocorre o fenômeno inverso, ou seja, a duração das histórias diminui, à medida que sua quantidade aumenta e assim por diante até o último livro do autor, no qual a duração das histórias é mínima e a quantidade máxima.

A parábola é, portanto, a forma geométrica que melhor descreve o curso de um longo itinerário literário que começa com grandes contos, se desenvolve com novelas de tamanho ainda maior e culmina com um grande romance, ao qual seguem, então, histórias breves e, por fim, muito breves ou mini-histórias, se assim preferirmos chamá-las. Esse desenho parabólico parece sugerir uma busca contínua por novos modos narrativos, sempre diferentes daqueles já experimentados, e que se distinguem pela extensão e quantidade de textos, bem como evidentemente pela trama. O escritor, portanto, experimentou formas cada vez mais breves e compactas, como se estivesse seguindo um plano estético alimentado por uma intenção subterrânea de prosseguir no sentido de deixar para trás a prosa e mergulhar no gênero literário da concisão por excelência, ou seja a poesia. O que, no entanto, não deve ser uma surpresa, se lembrarmos que o primeiro livro escrito pelo autor, e que permaneceu inédito por 61 anos, é justamente uma antologia de poemas, intitulada Magma, vencedora em 1936 de um prêmio literário criado pela Academia Brasileira de Letras, mas nunca publicada em vida pelo escritor, porque a considerava, como ele próprio declarou em seu Discurso

de posse, uma coleção de versos “não totalmente maus, mas tampouco muito convincentes.”32. Tudo

29 A partir da terceira edição, publicada entre 1964 e 1965, Corpo de Baile é dividido em três volumes. 30 O significado da palavra estórias será analisado no capítulo dedicado à tradução do livro Primeiras Estórias. 31 Em 1969 e em 1970 são publicados respectivamente Estas Estórias e Ave, Palavra. Estas obras não são levadas em

consideração nesta análise, porque não refletem a vontade do autor. 32 Guimarães Rosa, Discurso de Posse, op. cit.

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isso nos autoriza a imaginar que, depois de uma primeira experiência não inteiramente satisfatória no campo poético, Guimarães Rosa, mais maduro e no auge de suas habilidades artísticas, queria tentar um retorno progressivo aos versos, onde teria que colocar à prova mais uma vez a sua experimentação lingüística consolidada e bem-sucedida para lidar com os espaços reduzidos e condensados da poesia.

Essa reflexão e as outras precedentes devem nos incentivar a observar João Guimarães Rosa a partir de uma perspectiva geral de sua obra e não mais, como é habitual, na condição de lendário autor da obra-prima Grande Sertão: Veredas, livro que, diga-se de passagem, poucos realmente leram33. Mais do que procurar um grande objetivo a ser alcançado, seja literário ou metafísico, Rosa

me parece um escritor que não se cansou jamais de procurar novos meios expressivos, comprometendo-se, a cada novo livro, de maneira ossessiva a forjar meticulosamente a matéria vida e a dar-lhe a forma de seu amor de pânico34 pela terra natal e pelos homens desta terra, que ele

conhecia como ninguém, e que queria contar e revelar para todo o Brasil e o mundo aquilo que ela tinha de mais profundo e misterioso. O sertão de Rosa, que permeia toda a sua obra, é talvez mais sertão do que o próprio sertão, porque, como manifestação de todas as suas virtualidades ontológicas, o sertão repentinamente se torna tudo o que poderia ser, ou seja, o sertão levado ao extremo de si mesmo. E a língua de Rosa também é extrema, original, selvagem, oral, não gramatical e perturbadora, com a qual ele sempre teve de lutar em seu itinerário dos muitos modos narrativos, uma língua híbrida e versátil, que varia do lirismo botânico e bovinológico de Sagarana ao exuberante barroco mestiço de Grande Sertão, para então alcançar no hermetismo impenetrável e minimalista de Tutaméia. Rosa é múltiplo e uno, porque é a multiplicidade física e fenomenológica da existência na unidade eterna e metafísica do sertão.

1.6 Guimarães Rosa e a recepção na Itália

Naturalmente, alguns riscos teremos de correr, com o público europeu – talvez hoje excessivamente materialista, racionalista, político, positivo, intelectualizante ou plebeizante, afastado do puro mágico, perdida sempre mais a sensibilidade e receptividade para o 'beatífico'. […] Inimigos, e irritados, et pour cause, meus livros sempre terão de ter ( basta ver o que mesmo aqui no Brasil acontece). Digo dos que se sentem, acaso, subconscientemente perturbados, incomodados; não me refiro ao direito de gostarem ou não, natural e legítimo tanto mais com relação a livros tão pouco harmoniosos e cheios de ingenuidades e defeitos.35

33 A atual tradutora de língua inglesa Alison Entrek recorda em um artigo que em 2015 Guimarães Rosa foi incluído em um Lit hub intitulado Ten Great Writers Nobody Reads. O artigo está disponível no link

https://www.wordswithoutborders.org/dispatches/article/when-in-hell-embrace-the-devil-alison-entrekin.

34 A expressão 'amor pânico' usada em relação a Guimarães Rosa foi atribuída ao crítico Franklin de Oliveira; citado em Vera Lúcia de Oliveira, op. cit., p. 13.

35 Guimarães Rosa, Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003, p. 86.

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Guimarães Rosa não estava completamente errado quando, em uma carta enviada ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, expressou uma certa preocupação com o destino de seus livros na Europa. Ao contrário do que acontecia no Brasil na época, estamos nos anos 60, no velho continente o processo de industrialização e de modernização da sociedade tinha-se expandido e se encontrava àquela altura em um estágio muito avançado. Era, portanto, um mundo fundamentalmente urbano, fundado nos princípios da racionalidade e objetividade, e impulsionado pelo progresso técnico-científico. No entendimento de Rosa, que tinha vivido e trabalhado na Europa como diplomata, tudo isso poderia representar um obstáculo ao acesso à sua obra, que tem como substrato uma matriz rural e profundamente metafísica. Em última análise, ele temia que a mentalidade cartesiana do laico europeu não lhe permitisse apreciar plenamente o universo arcaico do homem religioso do sertão.

Embora seu receio não fosse totalmente infundado, como demonstra o episódio da candidatura de Grande Sertão: Veredas ao prêmio literário internacional de 1965, onde o romance foi aspramente rejeitado, porque, segundo o porta-voz do grupo francês, um livro inspirado em uma sociedade arcaica não teria nada a acrescentar à sociedade ocidental moderna36, não me parece que

esse tenha sido o aspecto mais problemático da recepção do escritor na Europa, e muito menos que tenha afetado apenas os europeus. Uma vez concluído em dimensão global ou quase aquilo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de "desencantamento do mundo" no início do século XX37,

isto é, a dominação de tudo através do cálculo e de recursos técnicos e o consequente desaparecimento da visão mágica da vida como um elemento coletivo da interpretação da realidade, cada um de nós, uns menos outros mais, na Europa ou em outro lugar, se encontra em dificuldade em ter que abordar qualquer forma de cultura que não tenha passado pela modernidade e não esteja organizada em torno de um eixo racional. Em vez disso, o que me parece a verdadeira questão sobre a qual devemos refletir, e que o autor parece ter subestimado, é a maneira pela qual seus admiradores, muito mais numerosos e respeitados do que os detratores, leram, interpretaram e difundiram a sua obra; isto é, para empregar uma expressão muito em voga na crônica de nossos dias, o maior risco vem justamente do chamado ‘fogo amigo’. A partir desta consideração começaremos a nossa análise.

A recepção de João Guimarães Rosa na Itália, e também em grande parte da Europa, embora tenha sido em geral positiva, ao contrário, portanto, do que o escritor temia, apresenta dois

36 O episódio completo é narrado pelo crítico português Óscar Lopes no livro Cifras do tempo, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, citado em João Maia, op. cit.

37 O conceito de Entzauberung der Welt foi introduzido por Max Weber na obra Wissenschaft als Beruf, publicada em 1919.

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problemas fundamentais. O primeiro, que poderíamos dizer de 'importação', é herdado do Brasil e consiste no fato de que a maioria dos estudos dedicados a ele se concentra em um único texto, a saber, o romance Grande Sertão: Veredas, que termina por “transbordar como um rio em inundação [...] sobre a inteira produção do autor", com o risco de “sufocá-la sob as águas do modelo evolutivo de um antes e um depois [...]” do opus maximum38. Essa miopia por parte dos estudiosos, como

vimos anteriormente, além de enfraquecer o valor literário das outras obras do escritor, torna muito problemática a construção de uma perspectiva hermenêutica rosiana mais ampla, que leve em consideração todo o seu percurso criativo. Esse fato cria, em particular no exterior, uma imagem reducionista de Rosa como autor de um único livro, o que se reflete, por exemplo, na escolha de livros a serem traduzidos: de fato, entre todas as línguas em que foi traduzido, e, diga-se de passagem, muito menos numerosas do que se imagina39, apenas quatro, o alemão, o francês, o

espanhol e, a partir de 2015, o italiano, podem se orgulhar de ter em seu sistema literário o conjunto das obras publicadas em vida por Rosa; enquanto na grande maioria dos outros, Grande Sertão é o único livro traduzido. Na Itália, no entanto, ainda não foram publicados o Discurso de posse, considerado por alguns como o seu verdadeiro testamento poético-literário, os dois volumes póstumos Estas Estórias e Ave, Palavra, e a coleção de poemas Magma, também póstumo, e talvez o único texto que pode ser considerado de menor importância literária.

O segundo problema, na minha opinião o mais insidioso, por ter origem em leitores e estudiosos que admiram e divulgam o trabalho do escritor, refere-se à questionável abordagem receptiva na qual a imagem de Rosa foi construída ao longo dos anos na Itália. Trata-se, portanto, de examinar mais detalhadamente como a crítica italiana interpretou a experiência literária de Guimarães Rosa de maneira mais ou menos consciente, sob uma perspectiva que apresenta traços típicos de um olhar etnocêntrico. Vale ressaltar, no entanto, que esse defeito na leitura, se é que assim o podemos chamar, não é apenas uma peculiaridade italiana, como evidenciado pelo fato de que o mesmo fenômeno se manifestou em todas as outras culturas que receberam os textos do escritor, mas é algo de muito mais enraizado na cultura ocidental. Mas uma tal reflexão não pode se dizer completa se não tratar de algo fundamental no processo de recepção de um autor fora de suas fronteiras nacionais, ou seja as traduções italianas das obras de Guimarães Rosa40.

38 Roberto Mulinacci, “Guimarães Rosa. Fiammiferi narrativi in forma di bagatelle”, il Manifesto, Alias Domenica, 8/02/2015, p. 3.

39 De acordo com as minhas pesquisas, ao menos até o dia 8 de agosto de 2019, Guimarães Rosa foi traduzido para os seguintes idiomas: francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, holandês, catalão, dinamarquês, norueguês, eslovaco, polonês e tcheco. Uma lista detalhada das traduções, mas que infelizmente desde 2013 não foi mais atualizada, é disponível em http://www.elfikurten.com.br/2013/05/joao-guimaraes-rosa-o-demiurgo-do-sertao.html.

40 As declarações de Guimarães Rosa a respeito do público europeu também denotam uma forma de etnocentrismo, que eu chamaria de etnocentrismo de retorno ou etnocentrismo reverso, pois são críticas baseadas não em dados históricos ou sociológicos, mas em generalizações e lugares comuns, mecanismos típicos da narrativa etnocêntrica, que desta vez, no entanto, são aplicados àqueles que geralmente fazem uso de tais discursos para justificar e

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1.7 Antoine Berman e as traduções etnocêntricas

Antes de prosseguir com a análise da recepção de Guimarães Rosa na Itália, é necessário esclarecer o que nós queremos dizer precisamente com etnocentrismo, sem que, no entanto, isso signifique a anulação de seus outros múltiplos sentidos e das tantas nuances que essa palavra possa apresentar e que, em todo caso, devem permanecer ligados a ela, pois são parte integrante de sua herança semântica e, como tal, são essenciais para uma sua compreensão mais estratificada. Meu ponto de referência teórico será o tradutor, linguista e teórico da tradução Antoine Berman e, em particular, seu livro La traduction et la lettre ou l'auberge du lointain41, onde encontramos a seguinte definição:

Ethnocentrique signifiera ici: qui ramène tout à sa propre culture, à ses normes et valeurs, et considère ce qui est situé en dehors de celle-ci – l'Étranger – comme négatif ou tout juste bon à être annexé, adapté, pour accroître la richesse de cette culture42.

Em seu livro, Berman faz uma análise crítica do conceito de etnocentrismo, que é apresentado, juntamente com os de hipertextualismo e platonismo, como um dos três traços característicos da concepção ocidental tradicional e dominante do que é o traduzir. Segundo o autor, isso é algo profundamente enraizado no pensamento, mas sobretudo na prática da tradução ocidental desde os tempos dos antigos romanos, que fundaram sua civilização em uma cultura de tradução do patrimônio filosófico-cultural grego alcançado através da “annexion systématique des textes, des formes, des termes grecs, le tout étant latinisé et, d'une certaine manière, rendu méconnaisable par ce mélange.”43 Além disso, Berman identifica, na figura de São Jerônimo, autor da Vulgata e

padroeiro dos tradutores, aquele que pela primeira vez elaborou uma formulação teórica do que mais tarde se tornaria a abordagem canônica da tradução no Ocidente, ou seja, traduzir um texto é fundamentalmente restituir o sentido deste texto. Um exame mais detalhado dessa concepção etnocêntrica e de suas relações articuladas com as chamadas literaturas nacionais, bem como a apresentação de uma perspectiva tradutológica completamente diferente proposta pelo próprio Berman, será realizada mais adiante, onde tentaremos refletir sobre a necessidade da re-tradução de Guimarães Rosa. Aquilo que nos interessa hic et nunc é no entanto aplicar a mesma definição bermaniana de etnocentrismo ao âmbito de recepção, e em particular a recepção rosiana na Itália,

legitimar a própria conduta.

41 Antoine Berman, La traduction e la lettre ou l'auberge du lontain, Paris, Éditions du Seuil, 1999. 42 Ibidem, p. 29.

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cuja análise não pode, além disso, prescindir do estudo de suas traduções para o italiano.

Estudar a recepção de um autor em um país que não seja o seu significa, antes de tudo, reconstruir o caminho histórico-literário pelo qual uma consciência subjetiva, ou seja a cultura daquele país, no nosso caso aquela italiana, recebeu, reelaborou, assimilou e transformou esse autor, oriundo de um outro sistema cultural. Trata-se, portanto, para citar Chevrel, que utiliza uma fórmula esquemática, mas muito eficaz, de compreender como um país X recebe um autor Y em um arco temporal variável44. No que diz respeito à nossa análise, esse arco temporal não será tão longo: vai,

indicativamente, de 1963, quando saiu a primeira tradução em italiano de dois contos do escritor, até 2018, ano de publicação de Il latte Versato45, de Virginia Caporali, o mais recente estudo dedicado à experiência de traduzir Guimarães Rosa. Um outro aspecto importante que não podemos perder de vista jamais é que uma reconstrução, seja ela qual for, nunca é a reconstrução de todo o processo que desejamos estudar, mas apenas de uma ou mais partes dele, e portanto, se a empresa tiver um êxito positivo, no final das contas será possível reconstruir nada além do que uma ou mais peças de um mosaico multi-facetado e complexo, cuja decifração total não pode ser alcançada em um determinado horizonte histórico e, por isso, identificar claramente o que procuramos é fundamental para o sucesso do trabalho. No caso de nosso estudo, dada a sua brevidade, obviamente não pretendemos fornecer um relato amplo da recepção do escritor na Itália, que seria um excelente tópico para uma tese de doutorado, mas, seguindo os traços de alguns dos aspectos mais relevantes nesse processo, tentaremos, através da análise de resenhas, ensaios e traduções, entender de maneira mais profunda como se deu a recepção de Rosa na Itália, explicitando ao mesmo tempo aqueles que são os seus traços mais etnocêntricos.

Se o etnocentrismo, como Berman explica, é um processo de anexação cultural, onde uma cultura traz para o interior de si mesma, ou melhor, às suas próprias normas e valores, o que é originalmente alheio a ela, ou seja, o Étranger, e deste se apropria através da domesticação de seus traços mais autóctones, não podemos iniciar nossa análise de maneira melhor senão do lugar que Guimarães Rosa ocupa no imaginário coletivo dos leitores e também em parte da crítica italiana.

O primeiro nome ao qual o escritor foi quase invariavelmente associado é o de James Joyce. De fato, se observarmos os artigos e resenhas publicados em jornais e revistas, mas também alguns ensaios publicados por estudiosos de maior autoridade, que infelizmente não poderemos analisar de maineira exaustiva, na maior parte dos casos, a inevitável comparação é feita justamente com o

44 O conceito de recepção apresentado e a fórmula de Chevrel podem ser consultados no ótimo livro de Elisa Alberani,

La ricezione italiana di Fernando Pessoa : tra mitizzazioni e appropriazioni (in)debite, Milano, Mimesis Edizioni,

2018.

45 Virginia Caporali, Il latte versato. João Guimarães Rosa: Tutameia, traduzione e ritraducibilità, Vittoria Iguazu Editore, 2018.

Riferimenti

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(Coleção Fortuna Crítica, 6). Grande Sertão: veredas, no Brasil, em dias de época. In: VEREDAS DE ROSA II. Anais do II Seminário Internacional João Guimarães Rosa. COVIZZI,

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