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A Noite Submarina: Poesia, Natureza e Espiritualidade em Albano Martins

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ANTÓNIO FOURNIER

Poesia, Natureza e Espiritualidade em

ALBANO MARTINS

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Poesia, Natureza e Espiritualidade em

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antónio fournier

Poesia, Natureza e Espiritualidade em

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Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação FOURNIER, António, 1966-

A noite submarina : poesia, natureza e espiritualidade em Albano Martins. – 1ª ed. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-763-5

CDU 821.134.3Martins, Albano.09

Autor da imagem de capa: Leopoldo Criner Título: Na noite a água

Técnica: Acrílico sobre tela Dimensão: 81x110 cm

Título: A Noite Submarina.

Poesia, natureza e espiritualidade em Albano Martins

Autor: António Fournier Editor: Fernando Mão de Ferro Capa: Raquel Ferreira

Depósito legal n.º 439 567/18

O presente livro segue a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

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Índice

1. O sonho de uma sombra: o estado poético do espírito

em Albano Martins ... 9

2. O poema fractal: Albano Martins e o entendimento da poesia ... 19

3. Quando traduzes/ o amor, tu sabes/ que é já outro o seu nome: Albano Martins e a tradução poética ... 31

4. Quebrar o gelo: Albano Martins e a tradução como antologia ... 49

5. Castália e outros poemas: beber da fonte ... 59

6. Biografia de Albano Martins ... 69

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(8)

Tradurre

l’azzurro di tutte le stelle con l’acqua

della notte sottomarina. Albano Martins

(9)
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1.

O sonho de uma sombra

:

o estado poético do espírito

em Albano Martins

Sou uma criança perdida na imaginação de um bosque.

Albano Martins

Este livro nasce de uma dádiva de afecto para com Albano Mar-tins, que conhecemos desde que organizámos no Funchal em 1999

uma pequena homenagem ao poeta italiano Giacomo Leopardi, por ocasião do seu bi-centenário, e que o convidámos na qualidade de seu tradutor. Mas também pretende ser um acto assumido de justiça intelectual em relação a uma obra que é, em nossa opinião, um exemplo raríssimo de rigor, vitalidade e coerência de um dos poe-tas mais longevos, autênticos e brilhantes da poesia portuguesa contemporânea.

Poucos gestos assumem maior simbolismo do que verter poesia, talvez a expressão espiritualmente mais elevada de uma língua – esse “produto inútil mas quase nunca nocivo”, como disse uma vez Eugenio Montale – para outro idioma, dando-lhe um novo horizon-te de expectativa e permitindo que exista pohorizon-tencialmenhorizon-te para uma nova comunidade de leitores. Tendo participado no processo de tradução para italiano da poesia de Albano Martins, tivemos opor-tunidade de nos aperceber de quão profunda consegue ser, apesar de perseguir constantemente o essencial, tão devedora como é do epigrama grego e, por afinidade, do haiku japonês. O facto de termos acompanhado de perto dois livros italianos dedicados à sua

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poesia1, dá-nos talvez legitimidade para abordar, como faremos em

dois capítulos desta obra, uma parte integrante da sua actividade criativa que é a tradução poética.

Aliás, confessamos, foi como tradutor de poetas que primeiro o conhecemos, nomeadamente como organizador quer da selecção de Cantos de Giacomo Leopardi2, quer da pequena antologia Dez

Poetas Italianos Contemporâneos3. E não deixa de ser curioso que

tenhamos conhecido esses poetas primeiro através da sua voz. Só mais tarde, precisamente nesses dias passados no Funchal no final do século passado, conhecemos, oferecidos pelo autor, alguns dos seus livros mais importantes: essa pedra de toque de toda a sua poética que é Rodomel Rododendro, marcado pela sua excepcional “fluvialidade” melódica, ou Uma Colina para os Lábios, esse hino ao erotismo como forma superior de conhecimento do sensível, ou ainda Escrito a Vermelho, talvez juntamente com Rodomel a me-lhor expressão da vocação testamentária e testemunhal de toda a poética albaniana.

Desde então, fomos complementando o nosso conhecimento da sua obra, nomeadamente através da leitura dos excelentes Cir-cunlóquios em que o autor revela a extrema consciência que tem da sua oficina poética bem como do seu enquadramento geracional, sempre em torno daquela fidelidade ao Humano que caracterizava a revista Árvore, autêntico centro de irradiação de um lirismo entendido como diálogo com o Universo, ao qual sempre se man-teve fiel. A certa altura, afigurou-se-nos evidente aquele que é para nós o elemento distintivo da poesia de Albano Martins e que po-demos chamar, conscientes dos riscos, a naturalidade. Não esta-mos a falar da forma breve, que salta logo à vista, aliás princípio poético praticado por outros poetas seus contemporâneos. Mas, no caso da poesia de Albano Martins, há algo que distingue

1 Albano Martins, Scritto in rosso, cura di António Fournier, traduzione di

Francesco Guazzelli e António Fournier, Edizioni dell’Orso, Alessandria, 2010 e 27 poesie, cura di António Fournier, traduzione di Giancarlo Depretis, LietoColle, Colezione “Stanza della poesia Pablo Luis Ávila” n.° 1, Faloppio, 2018.

2 Cantos, de Giacomo Leopardi, apresentação, selecção e notas de Albano

Martins, Editora Vega, Lisboa, 1986.

3 Dez Poetas Italianos Contemporâneos, Dom Quixote, Colecção “O

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te essa concisão: a sua respiração poética parece ser directamente inspirada no princípio de auto-similitude presente na natureza, a qual se multiplica sempre da mesma forma a partir de um modelo base. Estamos a referir-nos à teoria dos fractais e tomamos aqui de empréstimo um conceito matemático para nomear algo que, na poesia natural de Albano Martins não tem rigorosamente nada de conceptual ou especulativo.

Queremos dizer que na sua poesia esse princípio actua de forma natural: contendo em si potencialmente todas as combinações poéticas possíveis, torna-se supérfluo um desenvolvimento discur-sivo mais amplo do que aquele contido na breve distância que vai da beleza à sabedoria. É isso que define, por excelência, toda a poesia de Albano Martins, particularmente bem sucedida na sua incessante busca da harmonia com a Natureza, como se fosse uma nomeação sem sujeito, uma simples fulguração do incidente de viver entendido como revelação do real. Ou seja, como diz o autor a propósito dos seus haikus, uma tentativa de “captar a fulguração do instante e o que se esconde atrás da espessa crosta do real”4. Em

sintonia com a cintilação desse instante, a poesia de Albano Mar-tins exprime-se como respiração natural, como o poeta afirma num poema presente já no seu primeiro livro, Secura Verde (1950):

Não forces a tua inspiração. Deixa a poesia vir naturalmente e não obrigues a mentir o coração. Procura ser espontâneo.

A verdadeira beleza

está no que o homem tem de semelhante com a natureza.5

Trata-se de um desígnio quase oracular de um então jovem poe-ta de vinte anos a que ele se manterá fiel durante os mais de sessen-ta anos seguintes, com a progressiva e assumida consciência de que o seu percurso poético era uma via corajosa e difícil, porque

4 Albano Martins, Circunlóquios III, Universidade Fernando Pessoa, Porto,

2016, p. 14.

5 Albano Martins, Secura Verde (1950). As Escarpas do Dia (Poesia

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ginal e em contra tendência em relação a uma poesia intelectuali-zada, inaugurada por Fernando Pessoa e seguida por Jorge de Sena, na senda de uma tradição “lírico-especulativa” – relembre-se a oposição pessoana entre “poetas que pensam o que sentem” e “poe-tas que sentem o que pensam”6 – que fará escola na poesia

portu-guesa da segunda metade do século XX, indo ao encontro do gosto dominante marcado “pela tendência pós-moderna a favorecer prin-cípios intelectuais sofisticados, complexos e estetizantes em detri-mento de outros mais simples e apesar de tudo profundamente ver-dadeiros”7.

Ora, a ausência de artificialismos retóricos dá à poesia de Alba-no Martins uma impressão de autenticidade que hoje, perante o esvaziamento do arsenal poético e o despojamento da linguagem da poesia em favor da linguagem do quotidiano praticada por tantos, se destaca porque afirma, sem nunca a ter traído, a sua verdade perante a reacção dessa mesma tendência pós-moderna ao esgota-mento das suas próprias possibilidades expressivas. O actual de-sencanto perante o niilismo de uma época secularizada que nos deixa a terrível sensação de nada tem importância, é o preço a pagar. Ora, a poesia de Albano Martins nunca correu esse risco porque sempre nos ensinou a atribuir um significado à existência, mostrando “as partículas de magia e humanidade que ainda existem no mundo e que brilham apesar da densa obscuridade da nossa época”, como diz Mitchell Drinion, o personagem de David Foster Wallace8.

Desde sempre caracterizada por uma limpidez ática e solar, va-lorizando o prazer sensorial e o erotismo, a poesia albaniana é atravessada por uma felicidade perlocutória à qual o leitor não consegue ficar indiferente. Essencial e expressivo como poucos, o ideolecto albaniano aspira sempre a coagular numa única “pupila de um verso” a seiva espessa e irrefreável do vivido, vivendo-o

6 apud João Rui de Sousa, António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo,

Editorial Diferença, Leiria, 1998, p. 22.

7 Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly, Ogni cosa risplende. I Classici e il

senso dell’esistenza (título original: All Things Shinning. Reading the Western Classics to Find Meaning in a Secular Age), Einaudi, Torino,

2012, p. 35.

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poeticamente como cintilação dos instantes de beleza dessa mesma vida. Daí resulta uma poesia-bonsai alimentada por uma autêntica oficina vegetal que produz fulgurantes metáforas botânicas, quer como expressão de uma clara predilecção pelo natural (e espontâ-neo) em detrimento do cultural (e retórico), quer como aspiração a uma relação simbiótica entre Homem e Natureza. Autêntico hino à matéria do tempo de que somos feitos, a poesia de Albano Martins é um canto simultaneamente anacrónico e actual, denso e leve, erótico e espiritual, eufórico e elegíaco, singelo e requintado, daque-le que é o poeta cósmico-erótico, por excelência, de toda a poesia portuguesa contemporânea.

Como lembra o verso de Píndaro na Pítica VIII que usámos co-mo título deste texto: “sonho de uma sombra o homem. Seres da duração de um dia, mas quando um clarão divino nos alcança fulgi-do resplende sobre os homens o lume e fulgi-doce é a vida”, no caso de Albano Martins, o que essa pequena sombra na terra tem de sagra-do é a capacidade de cantar como poucos o Humano em toda a sua plenitude e vitalidade. Como lembra Albano Martins em “Eros e poesia”, “não há erotismo sem sexo. Real ou virtual, declarado ou oculto. Sabiam-no os Gregos e os Latinos e sabemo-lo nós. Foi a igreja católica, ao introduzir no tecido cultural do Ocidente a noção de “pecado”, que os separou de forma insólita, abrupta e violenta. Mas, parafraseando Terêncio [...] todos os dias a arte proclama que o que é do homem ao homem pertence ou, por outras palavras, que nada do que é humano pode ser ignorado pela arte”9. Nesta

con-cepção do Humano como Universal e da Poesia como Arte do Humano está, julgamos, um dos princípios mais pujantes da poéti-ca de Albano Martins: uma distância étipoéti-ca em relação a uma certa dimensão do Moderno, ou melhor, da modernidade. Como Albano Martins afirma em “Carta a um Poeta”:

O grande equívoco da literatura, se não de toda a arte moder-na, é o de, precisamente, a meu ver, da vida de ter afastado al-gumas vezes. Muitas das construções – literárias, artísticas – do nosso tempo, o tempo português e universal, são inega-velmente engenhosas, ilustres, no sentido que brilham, mas é necessário distinguir o engenho do genuíno talento criador e o brilho próprio da luz artificial ou de empréstimo. A obra de

(15)

arte, produto que é do homem, não pode ser outra coisa senão a imagem e o espelho do próprio homem. Neste sentido é que, parece-me, vida e arte se identificam. Fala-me de modernida-de, vanguarda, ruptura, termos ambíguos em si mesmos e ca-pa protectora sob a qual buscam refúgio, não raras vezes, os literatos dos diversos quadrantes. Os modelos que a cada pas-so nos impõem, em nome duma falsa ou pretensa modernida-de, roçam às vezes o grotesco; outras, são o exemplo acabado dum certo aventureirismo exibicionista próprio da adolescên-cia imatura ou do narcisismo serôdio. Original é o que nasce do sangue, o que brota da fonte, o que é fiel às origens; mo-derno, o que veste, não as roupagens da moda, mas as da in-temporalidade10.

Por isso, julgamos que é chegada a altura de abordar a poesia de Albano Martins a partir de um prisma diferente, nunca analisado num autor tido como laico. Falamos da espiritualidade entendida como “estado poético do espírito”, como lhe chamou Manuel Frias Martins, num livro recente dedicado a José Saramago, aparentemen-te o último de quem se poderia falar desaparentemen-te aspecto. Mas como lembra o crítico, trata-se de “um estado de possibilidade criativa, ou um nada germinal da representação (literária) cuja força é potência reveladora de motivações espirituais”11 que “abre uma via de

mani-festação da poesia como algo que se liga menos a um modo de ex-clusiva expressão artística e mais a um modo imediato de apreender a realidade na sua constância e simultânea impermanência, bem como a uma forma bela de existência das coisas, ou uma busca da beleza, de toda e qualquer beleza, onde quer que ela se manifeste ou se dê a ver”12. Trata-se, portanto, de desvincular a experiência

da espiritualidade do campo da religiosidade, ou seja, entendê-la como experiência laica do sagrado, expressa num corpo gratifican-do por estar vivo. Como lembra Henry Corbin: “a imaginação criadora é o órgão de percepção de um mundo intermédio onde o corpóreo se torna espiritual e o espiritual toma forma num

10 Albano Martins, “Carta a um Poeta” in Circunlóquios, Edições

Universi-dade Fernando Pessoa, Porto, 2000, pp. 16-17.

11 Manuel Frias Martins, A Espiritualidade Clandestina de José Saramago,

Fundação José Saramago, Lisboa, 2014, p. 55.

(16)

po”13.

Intensidade da experiência do Sensível, deslumbramento peran-te o ser amado, beatitude peranperan-te o Cosmos, respeito pela Natureza são valores desde sempre expressos na poesia de Albano Martins que assume como princípio ontológico, a função solene de saturar aquela fractura abrupta e violenta no tecido cultural do Ocidente14.

Trata-se de abordar com delicadeza e sensibilidade toda uma série de temas que a modernidade excluiu da vida do Homem. Segundo o poeta italiano Giuseppe Conte, “o Ocidente está de tal maneira em crise [...] que nem se apercebe da tragédia do desaparecimento da poesia do seu território ético e espiritual. Porque o Ocidente já não tem um território ético e espiritual, e já não tem nenhuma energia espiritual”15. Ora, essa energia espiritual parece perpassar

toda a poesia de Albano Martins, como ele próprio declara no texto “Poesia e testemunho” lido em Santo Tirso por ocasião do Dia Mundial da Poesia, em 2011:

As palavras testemunho e testamento, a que recorro para in-troduzir esta breve alocução, têm uma base comum: o subs-tantivo latino testis, que significa “testemunha”. (...) elas são o meio mais eficaz e expedito de afirmar que toda a minha obra, cada um dos meus livros, cada um dos meus poemas, cada um dos meus versos é, realmente, e simultaneamente, um testemunho e um testamento. Gostaria que os meus leito-res – por reduzidos que sejam – assim o entendesse. Que vissem na minha obra a marca de alguém que, sabendo que nasceu para a morte, tentou, com os escassos meios de que dispõe e a natureza benevolamente lhe concede, superá-la ou, quando não, iludi-la, em todos os momentos da sua vida. É esse o meu legado, o meu testamento, e é também o irre-cusável testemunho de quem, sabendo-se limitado, se serviu

13 apud Donatella Bisutti, “Editoriale” in AA.VV., Poesia e Spiritualità.

Semestrale di cultura transdiciplinare, n.° 1, Cattedrale, Ancona, 2007,

p. 12.

14 Em linha, de resto, com o entendimento de Frias Martins: “entendida deste

modo, a espiritualidade perde, em princípio, aquela imagem de narcótico que por vezes lhe é associada em virtude do cativeiro teológico em que existiu – e continua a existir, sobretudo ao nível do senso comum”, ibidem.

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do poder que as palavras lhe conferem para afirmar, sem re-servas, a sua humanidade, a sua contingência temporal e a sua insignificância perante a grandeza dessa obra maior que é o universo onde nos situamos e de que somos parte inteira, embora mínima16.

A poesia de Albano Martins parece dizer que é intemporal como aquela antena vegetal que é o Homem, que projecta uma pequena sombra trémula e passageira no mundo que a engloba, integra, dissolve na Natureza. Não só renega a “humanidade mercurial, dedicada ao lucro”17, mas recusa o urbano, como paisagem poética,

e o presente, como expressão da contemporaneidade. Ou melhor, o presente é olhado a partir de uma perspectiva insólita: de uma paisagem antiga, antiga na memória pessoal, e na memória do mundo – a Rascoa da infância, a sua Grécia interior. Basta ver quais são as palavras escolhidas para o seu Pequeno Dicionário Privativo18, quase todas configuradoras de uma geografia afectiva,

muito distante da vida neurótica e confusa da cidade pós-moderna: Acácia, Água, Agulhas, Árvores, Cegonhas, Cerejas, Cigarras, Flauta, Fogo, Folha, Fonte, Grilo, Guitarras, Ilhas, Incêndio, Jaca-randás, Lágrima, Lâmpada, Laranjas, Lua, Luz, Magnólia, Mulher, Papoilas, Pássaros, Perfume, Rolas, Romãs, Rosa, Rugas, Seios, Sinos, Vermelho, Verão. Esta isotopia rural prende-se, por outro lado, com um último aspecto que é preciso sublinhar na poesia natural de Albano Martins, um conceito que lhe é particularmente caro e que está em declínio no mundo hiper-tecnológico de hoje: o de poiesis.

Como lembram Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly num livro fascinante como All Things Shining. Reading the Western Classics to Find Meaning in a Secular Age, “até há cerca de cem anos atrás, as práticas de educação e cura da poiesis constituíam o núcleo à volta do qual se organizava a vida. O estilo poiético manifestava-se, de resto, na habilidade do artesão em criar objectos o mais possível

16 Albano Martins, Circunlóquios III, cit., p. 76.

17 Giorgio Bárberi Squarotti, “Umanità e natura nella poesia de Rebora” in

AA.VV., Poesia e spiritualità in Clemente Rebora. Studi e testimonianze, Interlinea, Novara, 1993, p. 35.

18 Albano Martins, Pequeno Dicionário Privativo seguido de Um Punhado

(18)

perfeitos. [...] A tarefa do artesão não é criar significado, mas culti-var nele próprio a capacidade de discernir um significado que já existe”19. O carpinteiro, por exemplo, tem uma relação íntima com o

material com que trabalha, está familiarizado com as qualidades da madeira, é sensível ao lugar de onde provém, conhece as fontes hídricas, o clima e as estações, o momento certo para serrá-la. Este conhecimento prático – continuam os autores – infunde nele uma ligação vital e um sentido de respeito e reverência pela terra onde vive, que “transcende o conceito de habilidade entendido como competência técnica e cria uma ligação com o sagrado”20.

Julgamos que é isto que caracteriza a poesia, ao mesmo tempo natural e espiritual de Albano Martins, que lhe permite, como afir-ma em “Pequenas coisas”, parafraseando Octavio Paz, “entrar sem bússola/ na floresta e não perder/ o rumo”, e com sensibilidade e delicadeza saber que “é preciso/ às vezes,/ não acordar o silêncio”21.

Este volume pretende ser uma homenagem ao sonho do sonho que é a poesia deste poeta sui generis, um dos poucos capazes, para usar as palavras de António Ramos Rosa, de “transformar a matéria do tempo em substância amante”. Esperamos que este nosso pequeno tributo possa estar à altura do homem raro que é Albano Martins, e faça jus ao seu contributo para o museu do Homem:

1.

O tempo é uma pedra amadurecida ao sol das mãos, uma raiz de gengibre germinando no escuro.

Omnipresente, a noite vela

o sono das sementes e das larvas.

2.

19 Ogni cosa risplende, cit., p. 192 (tradução nossa a partir da edição

italiana).

20 idem, p. 196.

21 Albano Martins, Escrito a Vermelho (1999). As Escarpas do Dia, cit.,

(19)

E o homem, então, olhou em seu redor e disse

às árvores: eu sou a folha maior.

E as aves do crepúsculo fizeram ninho na sua boca.22

22 Albano Martins, O mesmo Nome (1996). As Escarpas do Dia, cit.,

(20)

2.

O poema fractal

:

Albano Martins e o entendimento da poesia

Vai passar o silêncio

a fronteira azul onde os gerânios estremecem a mais pura gota de água

Fernando J.B. Martinho, “Fronteira azul”23

“A poem begins in delight and ends in wisdom”24. A afirmação

de Robert Frost, citada por Fernando J. B. Martinho, co-director juntamente com Albano Martins da colecção Daimon, onde este publicou em 1967 a colectânea Coração de Bússola, interrompendo um silêncio que durava desde o seu livro de estreia, Secura Verde, editado em 1950, serve na perfeição para descrever o efeito provo-cado pela poesia albaniana no leitor. A distância entre os dois, entre o começo e o fim do poema, é muitas vezes ínfima, fulminan-te – é uma técnica que o autor foi aperfeiçoando no decurso dos seus mais de sessenta anos de actividade poética – mas o efeito é profundo e duradouro: faz-nos desistir de encontrar outras palavras porque a síntese poética perfeita entre beleza e sapiência já foi encontrada, condensada numa única pérola ou, para retomar o verso de Fernando J. B. Martinho, na “mais pura gota de água”.

É preciso esclarecer que Albano Martins não é um autor de poemas belos, no que isso tem de mero comprazimento formal. Se

23 Fernando J. B. Martinho, Resposta a Rorschach, Colecção Daimon, Évora,

1970, p. 13.

(21)

essa pérola perfeita brilha intensamente é porque no seu interior há um pequeno núcleo incandescente, um bonsai iridescente que contém em potência todo o universo. Poder-se-ia falar por analo-gia, recorrendo à teorização de Benoît Mandelbrot, de um “poema fractal”, ou seja, de uma poesia que obedece ao mesmo princípio de auto-similitude que existe na natureza, segundo o qual a mais pequena forma contém potencialmente todas as combinações possíveis. De resto, a vegetalidade25 é mesmo um dos princípios

constitutivos desta poesia tão densa no conteúdo quanto ligeira na forma, que se apresenta amiúde como osmose botânica (cite-se a metáfora “antena vegetal” presente no poema “Elegia em forma de epístola”) e se configura como “sussurro da matéria”, como obser-vou Joana Matos Frias, ao falar de “uma lente meticulosa [...] que expõe e aumenta o detalhe e a complexa textura dos seres e dos objectos”26. Esta poética é também suportada por procedimentos

discursivos que desafiam muitas vezes o princípio de contradição, pois os opostos macrocosmos/microcosmos tendem a anular-se, inverter-se ou a espelhar-se um no outro. Veja-se por exemplo: “Maiúsculo amor/ com o sol por dentro./ Flor dentro da flor./ Centro do próprio centro”27.

“La forme doit faire corps avec le concept” afirma o pintor Jor-ge Martins citado pelo filósofo Fernando Gil em “Elogio do míni-mo”28. Se “a pintura é o algoritmo do invisível”, poder-se-á aplicar

à poesia de Albano Martins a mesma interpretação que Fernando Gil faz da pintura de Jorge Martins: “A luz vem de dentro, quer dizer, não é reflexo mas fosforescência, em perfeita consonância com as exigências de uma necessidade interna”29. A aproximação à

pintura não é decerto casual num poeta que foi sempre impelido

25 Recorremos aqui ao conceito proposto por Bernardette Capelo-Pereira em

Arte e Natureza na Obra de Albano Martins, Chiado Editora, Lisboa,

2015, p. 34.

26 Joana Matos Frias, “O Percurso e o Périplo” [recensão a Assim são as

Algas: Poesia 1950-2000] in Relâmpago n.° 8, Fundação Luís Miguel

Nava, 4/2001, p. 227.

27 Albano Martins, Inéditos e Dispersos (1968-1973), As Escarpas do Dia,

cit., p. 56.

28 Fernando Gil, Modos da evidência, INCM, Lisboa, 1998, pp. 528-532 29 idem, p. 531.

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pela necessidade de dialogar com as artes plásticas30, e cuja poesia

se apresenta muitas vezes como um “regime ecfrástico em estado puro”31. Mas vejamos mais de perto esta “exigência de uma

neces-sidade interior” na poesia de Albano Martins a qual, não por acaso – vista a sua concisão e densidade expressivas –, está, por vezes, muito próxima da arte do haiku, de resto também por ele eximia-mente praticada: “Palavra: insone/ borboleta/ sonora”32. Porém,

esta busca do essencial como recusa do supérfluo, esta vocação do silêncio33, numa época dominada pelo rumor indistinto que sufoca

qualquer voz poética, tem outras implicações que importa aqui aprofundar.

Em primeiro lugar, é sintomática a concepção que Albano Mar-tins tem do processo criativo: as palavras aglutinam-se de forma aparentemente casual, procuram-se umas às outras, agregam-se, arrastam consigo outras ou rechaçam-se mutuamente, como pedras--ímans. Este magnetismo verbal forma uma constelação de pala-vras em torno de um núcleo semântico original que apela novamen-te à novamen-teoria do caos. É a ideia que escolhe, num primeiro momento, a forma. Esta forma impõe-se, instala-se: serve de modelo recursivo. Aglutinando-se numa determinada maneira, as palavras criam, justamente, uma certa fosforescência à volta do núcleo originário

30 “O panorama dos livros de Albano Martins evidencia uma relação

passional com o universo da criação plástica. O desenho, a pintura, a escultura são objectos correlativos dos poemas de Inconcretos Domínios (1980), Vertical o Desejo (1985), Os Patamares da Memória (1990),

Entre a Cicuta e o Mosto (1992) e (...) A Voz do Olhar (1998), que ostenta

dezenas de reproduções a cores de obras de arte de todos os tempos, da pré-história à contemporaneidade, edificando um «museu imaginário» no seio da meditação poética sob o signo de uma epígrafe de Rafael Alberti: «La sorprendente, agónica, desvelada alegría/ de buscar la Pintura y hallar la Poesía»“, Luís Adriano Carlos, O Arco-íris da Poesia. Ekphrasis em

Albano Martins, Campo das Letras, Porto, 2002, p. 20.

31 “A colectânea Assim São as Algas vem re-centrar toda a poesia do autor

num regime ecfrástico em estado puro. A palavra e o poema constituem, literalmente, não um discurso sobre a pintura, mas uma pintura falante”,

idem, p. 26.

32 Albano Martins, Com as Flores de Salgueiro. Homenagem a Bashô,

Edições Universidade Fernando Pessoa, Porto, 1995, p. 105.

33 Título da colectânea homónima Vocação do Silêncio. Poesia 1950-1985,

(23)

de onde partiram (“A lâmpada/ do sangue/ ininterrupta/ mente/ acesa.”34). Definem, por si sós, um certo ritmo melódico, uma

“miniloquência”35 anti-retórica que é, em última instância, uma das

razões da sua beleza cristalina.

É preciso também frisar a importância que a imagem e a metá-fora adquirem na poesia de Albano Martins. Os seus micro-poemas coincidem muitas vezes com uma única imagem fulgurante, como “florida, incandescente metáfora” ao serviço da já referida técnica de intensificação expressiva, perfeitamente coerente com quanto afirma Octavio Paz: “Cada imagem aproxima e une realidades opostas, indiferentes ou distantes entre elas. Ou seja, reconduz à unidade a multiplicidade do real”36. Veja-se, a título de exemplo,

os versos que compõem o poema de abertura da colectânea A Margem do Azul: “Um leopardo/ azul me conduz/ pelo dorso da noite”, dos quais não estão certamente ausentes a lição simbolista e a imaginação surrealista, de cujos excessos, porém, Albano Martins sempre se precaveu. Como afirma Fernando Guimarães, a poesia de Albano Martins é caracterizada por um acentuado “desenvolvi-mento imaginístico e metafórico” e “tende a concentrar-se em imagens, o que contribui para a própria brevidade dos seus poemas [...]. Dir-se-ia que a imagem aparece aqui, se quisermos utilizar uma expressão do autor, como a pupila de um verso”37.

Esta estupenda “pupila do verso” que contém em potência todo “o ritmo do universo”38 é, de resto, emblemática de uma poesia que

34 Albano Martins, Uma Colina para os Lábios (1993), As Escarpas do Dia,

cit., p. 211.

35 Álvaro Cardoso Gomes, A Melodia do Silêncio. Subsídios para o Estudo

da Poesia de Albano Martins, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2005,

p. 13.

36 Octavio Paz, “L’immagine” in L’arco e la lira, il melangolo, Genova,

1991, p. 105. Veja-se também p. 115: “Assim, cada imagem reproduz o instante da percepção e obriga o leitor a suscitar dentro de si o objecto percepcionado outrora. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como dizia Machado: não representa mas sim apresenta” (traduz-se, por questões de acessibilidade, a partir da tradução italiana).

37 Fernando Guimarães, A Poesia Contemporânea Portuguesa e o Fim da

Modernidade, Caminho, Lisboa, 1989, p. 65.

38 “O ritmo/ do universo/ cabe,/ inteiro,/ na pupila/ de um verso”, Albano

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se desenrola prevalentemente no tempo presente, e mais do que no tempo presente, no instante absoluto, como nos recorda, por sua vez, Eduardo Lourenço: “o seu tom não é o da evocação e da nostalgia, mas o da intensa fulguração do presente que [...] é o presente mesmo da vida nos seus momentos de intensidade”39. A

esta característica está também associada uma acentuada tendência perlocutória: as composições de Albano Martins são poemas que nomeiam, criando instantaneamente no acto de dizer uma realidade discursiva que se impõe pela força da sua verdade: “Eu te baptizo: hidrângea/ é teu nome – cesto/ de água, idioma/ e intriga do perfu-me”40. É este presente absoluto que aflora incessantemente, que faz

com que essa força seja sentida como sentença, ou exemplum, de uma verdade universal, da qual não está ausente, como já dissemos, uma dimensão ética.

Daí resulta uma poesia que já foi definida como “oracular”41,

próxima do epigrama e do aforismo, e que se dirige amiúde a um “tu” como a uma espécie de alter ego do poeta (note-se que é rara em Albano Martins a primeira pessoal do singular), mas no qual o próprio leitor se reconhece, como se se tratasse de “uma relação entre um mestre, dono de uma sabedoria, e um discípulo, pronto a captar uma lição poética”42. Veja-se por exemplo: “Não forces a

tua inspiração/ Deixa a poesia vir naturalmente/ e não obrigues a mentir o coração.// Procura ser espontâneo./ A verdadeira beleza/ está no que o homem tem de semelhante/ com a natureza.”43 Não

deixa de ser surpreendente que estes versos, que sintetizam na perfeição a sua arte poética, façam parte do primeiro livro de Alba-no Martins, Secura Verde, publicado quando o poeta tinha acabado de fazer vinte anos.

A este propósito, é curioso notar uma analogia programática en-tre os dois primeiros poemas dos respectivos livros de esen-treia de

39 Eduardo Lourenço, “Albano Martins: entre dois silêncios” in Vocação do

Silêncio, cit., p. 20.

40 Albano Martins, A Margem do Azul (1982), As Escarpas do Dia, cit.,

p. 98.

41 Eduardo Lourenço, “Albano Martins: entre dois silêncios” in Vocação do

Silêncio, cit., p. 19.

42 Cardoso Gomes, A Melodia do Silêncio, cit., p. 41.

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Albano Martins (Secura Verde, 1950) e de outro grande poeta seu contemporâneo, David Mourão-Ferreira (A Secreta Viagem, 1950). Além de estarem ligados por uma profunda amizade, cada um deles colaborou, como se sabe, em duas das mais importantes revistas publicadas nos anos cinquenta em Portugal – respectivamente, Árvore e Távola Redonda – as quais marcam o regresso a um liris-mo impregnado de valores humanos, naquilo a que Fernando J.B. Martinho chamou de “fidelidade ao humano”, ou seja, uma terceira via entre os automatismos e as livres associações do surrealismo e a submissão à estética do neo-realismo44. À “Inscrição sobre as

ondas” de David Mourão-Ferreira:

Mal fora iniciada a secreta viagem, um deus me segredou que eu não iria só. Por isso a cada vulto os sentidos reagem, supondo ser a luz que o deus me segredou.45

responde Albano Martins com “Poema vegetal”:

Não me perguntem porque fico: não saberia responder.

Vozes ocultas segredam-me palavras que me obrigam a permanecer.

e acrescenta:

Eu próprio ignoro

a causa desta minha sujeição.

Trago a seiva dos troncos no meu corpo e, como eles, estou preso ao chão.46

44 Como lembra, por sua vez, Fernando Guimarães: “Recusa-se, pois, não só

a imaginação em excesso da poesia surrealista, mas também uma outra espécie de expansão verbal que resultaria do apego a uma construção de natureza alegórica capaz de provocar, de acordo com as intenções dos neo--realistas, a segunda leitura de um sentido político ou ideológico.” in Fernando Guimarães, A Poesia Contemporânea Portuguesa, cit., p. 64.

45 David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem. Obra Poética. 1948-1988,

Editorial Presença, Lisboa, 1988, p. 27.

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É evidente como nestas duas declarações de fé poética há a mes-ma aproximes-mação à inspiração como acto sibilino de revelação (a rilkeana “voz secreta”), mas é também óbvio que a mesma se manifesta de forma quase diametralmente oposta, como se pode ver não tanto na dialéctica entre partir e ficar ou entre estar em trânsito e estar radicado na terra, quanto no que podemos chamar de princípio ontológico de não-separação sujeito-objecto em Albano Martins. Em Mourão-Ferreira prevalece a clássica fractura sujeito-natureza, ao passo que em Albano Martins, mais do que a identificação com a natureza, há uma autêntica fusão botânica, o ser unha e carne com a natureza. Se em Mourão-Ferreira a viagem serve à poesia como agnição ou epifania, isto é, como estímulo à percepção do sensível – o encontro com o Outro é de resto uma reminiscência platónica –, em Albano Martins “trazer a seiva dos troncos no corpo”, ou seja, ser natural como a natureza, é condição primeira para fazer com que o poema seja “menos um esclarecimento do que uma revelação, esse instante em que a imagem nos coloca perante uma totalidade, mas essa revelação é o próprio mistério do real”47.

Por isso, como lembra Bernardette Capelo-Pereira, a natureza em Albano Martins “não é apenas fonte de imagens e metáforas, mas também modelo do processo poético”48. Também por isso a

sua poesia exprime prevalentemente uma rasura da contingência em favor da percepção da imanência, uma poesia que procura dizer a essência em detrimento da referência (excepção feita aos poemas de viagem, sobretudo A Voz do Chorinho ou os Apelos da Memó-ria, de 1987, livro muito marcado pelo deslumbramento perante a descoberta pessoal do Brasil), ou, para usar novamente uma analo-gia vegetal, uma poesia que procura a raiz mais do que os ramos, entendendo-se por raiz aquilo que não se vê, aquilo que é insondá-vel e que a poesia procura reinsondá-velar. Segundo Fernando Castro Bran-co, a poesia de Albano Martins é toda ela marcada pelo “carácter ontológico da relação sensível, muito afastada da uma captação sentimental e subjectiva de uma exterioridade [...] fundada num

47 António Ramos Rosa, A Parede Azul. Estudos sobre poesia e artes

plásticas, Caminho, Lisboa, 1991, p. 26.

48 Bernardette Capelo-Pereira, “Arte e natureza na obra de Albano Martins”

in AA.VV., A Palavra Perfeita. Homenagem a Albano Martins, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2009, p. 29.

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mero psicologismo impressionista. [...] Pela sua entrada no discur-so poético, o real perde a sua materialidade opaca, para ganhar a transparência que lhe advém da metamorfose à qual foi submetido. O que se pretende não é abolir o real, mas o ruído e todo o circuns-tancialismo que o rodeia”49.

Podemos falar, por conseguinte, de uma poesia matérica radica-da na compreensão do vivido. Uma poesia feita não de emoções mas de experiência, que fala do nosso estar poeticamente no mun-do, segundo a lição de Hölderlin. Recusando qualquer dimensão transcendental ou metafísica, os poemas de Albano Martins são um hino à materialidade, um canto do corpo, das coisas, da natureza: fontes, algas, pássaros, árvores, uma cosmogonia vital. Duas cores predominam nesta “poética do sensível”, para as quais aludem, de resto, os títulos dos livros A Margem do Azul e Escrito a Vermelho: por um lado, o azul onírico, território das aspirações humanas: “Bem sabes que, se respiras, foi com elas que aprendeste a organi-zada melodia que sopra e tremula nos teus versos. A melodia do tempo e do espaço liberto. A do azul. Do azul que de dia te serve de sonora grinalda e à noite é o repousado diadema de estrelas que te orna a cabeça e coroa os teus sonhos”50. Por outro lado, o

encar-nado ou vermelho-sangue, porque “foi ao serviço/ de uma causa/ que vieste. Não lhe dirás/ o nome, nem é preciso,/ julgo eu. Basta que se saiba/ que foi com o sangue/ que sempre o escreveste”51.

Atravessado por estas duas extremidades do espectro cromático, está o Homem, na sua dupla dimensão espiritual e animal, qual antena vegetal a ligar o Cosmos a valores universais da humanida-de como o amor, a ternura, a lealdahumanida-de, o erotismo. Poesia, portanto, como testemunho de vida e testamento espiritual: como se “Das essências/ a parte que me coube a dissipei/ em lume de esmeraldas/ e de escamas”52 e não restasse senão “Um papagaio de papel e de

cinza”53.

49 José Fernando Castro Branco, Poética do Sensível em Albano Martins,

Roma Editora, Lisboa, 2004, pp. 79-80.

50 Albano Martins, Rodomel Rododendro (1989), As Escarpas do Dia, cit.,

p. 186.

51 Albano Martins, Escrito a Vermelho, idem, p. 326. 52 Albano Martins, O mesmo Nome, idem, p. 228. 53 Albano Martins, Rodomel Rododendro, idem, p. 179.

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Por isso, apesar de ser uma poesia repleta de imagens límpidas, apolíneas, epicuristas, que “comunica[m] o sentimento de uma felicidade solar”54, não é imune ao sentimento elegíaco do tempo,

que se impõe como reverso da vida, pois como bem sabe o poeta nascemos para a morte, sendo a vida nada mais do que uma “mag-nífica invenção/ da morte”55. Como já observou o crítico brasileiro

Álvaro Cardoso Gomes, “Não é difícil encontrar na poesia de Albano Martins essa consciência da fragilidade da vida e, mais ainda, o princípio da inexorabilidade do destino que transforma a aventura humana num périplo em que a morte espreita a cada momento: “Toda/ a aventura humana/ é gume de água, lâmpada febril”56. Por isso, como afirmou Vítor Aguiar e Silva, “a voz

poé-tica de Albano Martins é talvez a mais bela, a mais depurada e subtil expressão do modo elegíaco na poesia portuguesa da segun-da metade do século XX”57.

Exemplo melhor desse sentimento do tempo é o poema em pro-sa Rodomel Rododendro, uma surpreendente alucinação encantató-ria, uma canção de embalar para o homem adulto que irrompe como fluxo fluvial, contínuo e irrefreável, um “poema sinfónico”58

54 Eduardo Lourenço, “Albano Martins: entre dois silêncios” in Vocação do

Silêncio, cit., p. 20.

55 Albano Martins, Coração de Bússola (1967), As Escarpas do Dia, cit.,

p. 48.

56 Álvaro Cardoso Gomes, “Exorcizando a morte” in Uma Flauta de Areia.

Actas do Colóquio/Homenagem. 50 anos de Vida Literária di Poeta Albano Martins (org. de Isabel Ponce de Leão), Universidade Fernando

Pessoa, Porto, 2001, p. 15.

57 “A poesia elegíaca de Albano Martins” in Isabel Vaz Ponce de Leão, Ecos

do Silêncio. Fotobiobibliografia de Albano Martins, Edições Universidade

Fernando Pessoa, Porto, 2000, p. 126. Veja-se ainda, de Vítor Aguiar e Silva, o ensaio com o mesmo título que serve de prefácio a As Escarpas do

Dia, nomeadamente a seguinte passagem: “Os seus enigmas, segredos,

sofrimentos e mágoas, sem a consolação de qualquer horizonte trans-cendental, florescem, numa melancolia trespassada de angústia serena, em poemas que constituem algumas das mais belas e comoventes elegias da língua portuguesa.” (in As Escarpas do Dia, cit., p. 17).

58 Cf. Jorge Valentim, A Quintessência Musical da Poesia: Rodomel

Rodo-dendro, um poema sinfónico de Albano Martins, Campo das Letras, Porto,

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que tem como cenário “uma espécie de paisagem sonora, que se inicia crepuscularmente «na Ribeira, pátio de escamas, desperdí-cios, sol deposto» [...] e vai «ao encontro da Foz»“59. Este rio é,

evidentemente, a grande alegoria da vida, que desliza no leito da língua de substrato que é a infância mítica. Flutuando, transporta-dos pela corrente em cheia, deslizam totransporta-dos os despojos do vivido. Como lembra Bernardette Capelo-Pereira, “[o] que nos perturba em Rodomel Rododendro é a amplitude d[a] ressonância interior, é uma experimentação levada até limites nunca dantes [tentados] da qualidade musical da língua, fazendo-a explodir em fulgurações sonoras, variações amplificadoras, expressão vigorosa de pulsões profundas, procedendo por alusões, estabelecendo longos arcos de motivos, ritmos, incessantemente retomados, multiplicados, inver-tidos, dissociados, fundidos, interpelando-se em ecos múltiplos, numa orquestração poderosa do poema como espaço de luminosa obscuridade, de onde emergem, fluem, refluem, morrem, vagas de sons e de sentidos, figuras, obsessões, desejos – pulsões de lingua-gem”60.

Também nesta dinâmica caudalosa e aparentemente caótica e em contra-tendência com a poética da contenção que caracteriza a poe-sia de Albano Martins, parece-nos detectar o mesmo princípio fractal de expansão lírica que está em potência dentro de cada seu verso. Pela primeira vez, esse potencial contido deflagra numa sucessão de imagens repetidas em diferentes combinações, num procedimento iterativo e infinitesimal cada vez mais rico em pormenores. Relem-bre-se, como exemplo de fractal, o conhecido “floco de neve”: “tomado um triângulo equilátero divide-se cada lado em três partes de comprimento igual e constrói-se em cada um dos segmentos intermédios um novo triangulo equilátero mais pequeno; repetindo o procedimento um número infinito de vezes, o resultado deverá ser uma figura de área finita mas com um perímetro de comprimento infinito e com um número infinito de vértices”61.

Este triângulo equilátero em Rodomel Rododendro são os três tempos verbais que compõem o poema em prosa: o imperfeito do

59 idem, pp. 47-48.

60 Bernadette Capelo-Pereira, “Rodomel Rododendro: o drama lírico da

escrita” in Arte e Natureza, cit., p. 17.

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primeiro tempo; o presente do segundo, e o futuro do terceiro, ou seja, respectivamente, o tempo crepuscular, o tempo perlocutório e o tempo oracular. Cada um destes três “lados” do poema é formado por diversas sequências. Cada uma delas começa com um verbo que lhe dá a tonalidade: 1. Íamos pela Ribeira; Íamos ao encontro da foz; Íamos soltos, nus, desprevenidos; Íamos na onda dos ci-prestes, na fuligem das casas, corações de telha ao rés da neblina, etc. 2. Dizes que a noite vai cair sobre nós, vermelha e táctil; Dizes que tudo é irreal e não há espelhos que nos revelem a face verda-deira; Que também a noite é solene, dizes; Praça da liberdade, confirmas. Dizes e confirmas; E dizes que há para tudo um lado invisível, etc. 3. E assistirás à explosão do século; E voltarás ao sótão para colher o fruto proibido aí guardado e que não soubeste alcançar então; E cortarás, com as tuas mãos libertas cortarás o cordão umbilical; E outra vez nascerás, e soltarás a voz emudeci-da, encarceraemudeci-da, à hora em que os sinos dobram, não a finados, mas à serena libertação das espécies. Cada uma destas sequências é formada, por sua vez, por uma constelação de imagens solares ou crepusculares consoante os movimentos projectivos ou retro-pro-jectivos de um sujeito poético que atravessa zonas de luz e de sombra, e se cinde em dois, desdobrando a sua viagem: um percur-so físico em direcção à foz do rio Douro (são evidentes as referên-cias à geografia urbana do Porto, sua cidade de adopção), mas também um percurso rememorativo em busca da nascente, da infância, do início de tudo, para confluírem ambos na plena imer-são na corrente irrecusável da vida: Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário”62. Eis o que é Rodomel Rododendro: a

biografia espiritual de um poeta “profundamente crente no poder redentor da poesia, na inesgotável capacidade que ela possui de sondar a espessura do real e dizer a universalidade do subjecti-vo”63.

62 Albano Martins, Rodomel Rododendro (1989), As Escarpas do Dia, cit.,

pp. 186-187.

63 Maria João Reynaud, Matéria Poética. Ensaios de Literatura Portuguesa,

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3. Quando traduzes/ o amor, tu sabes/ que é já outro o seu

nome: Albano Martins e a tradução poética

Na dedicatória que fez no nosso exemplar de Dez Poetas Gre-gos Arcaicos64, Albano Martins referia-se a “estes poetas antigos

(e tão modernos afinal), confiados à língua portuguesa”. Gostarí-amos de tomar de empréstimo as suas palavras para tecermos algumas considerações sobre a sua faceta de tradutor de poetas.

Sabe-se que nenhum idioma reflecte a experiência humana da mesma forma, e que, por consequência, a distância temporal/geo-gráfica/cultural que separa uma língua original de uma qualquer língua de acolhimento constitui inevitavelmente um desafio incon-tornável que se coloca à tradução literária. Esse inevitável estra-nhamento é ainda mais facilmente sentido quando lemos um texto pertencente a uma língua morta. Aliás, será talvez exagerado dizer que essa língua está morta, já que esse texto foi encontrando quem o recuperasse constantemente para o convívio dos vivos, quer através de notas de leitura, quer através de traduções, que assim inevitavelmente o foram re-datando. Entre a distância primordial, que o tradutor nunca poderá plenamente reconstruir, interferem assim uma imensa variedade de ecos, mas também de vazios de sentido e de desvios de contexto, que, no caso da poesia, implicam a necessidade, mais do que uma interpretação, de uma autêntica decifração. Pode-se dizer que o significado de qualquer texto antigo nos chega distorcido na sua estrutura originária exactamente como a luz de uma estrela chega até nós deformada pela passagem

64 Dez Poetas Gregos Arcaicos, selecção e versão a partir do original e notas

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através do tempo e dos sucessivos campos gravitacionais que encontrou pelo caminho.

A tradução poética, que é uma das formas mais produtivas de realizar o potencial que qualquer texto literário, enquanto obra aberta, contém (para lembrar o conceito de cooperação interpretati-va proposto por Eco), possui sempre esse resíduo de ambiguidade de fundo, consistindo o acto de traduzir, que também é um acto de generosidade ou de empatia65, uma tentativa de conciliação ou

mesmo apropriação pelo imaginário do tradutor do espaço desse eventual estranhamento. Esse esforço de anular a distância cultural que o separa da voz do texto, procurando reconstituir as provas do delito que terão sido as circunstâncias da sua génese, é ainda mais louvável uma vez que se deve materializar poeticamente em formas linguísticas estranhas às condições originais que deram vida ao tex-to original66. E contudo aqueles poemas gregos tão antigos

65 “[Translation] is an exercise of sympathy on the highest level. The writer

who can project himself into the exaltation of another learns more than the craft of words. He learns the stuff of poetry. It is not just his prosady he keeps alert, it is his heart. The imagination must evoke, not just a vanished detail of experience, but the fullness of another human being”, Kenneth Rexroth, “The poet as translator” in AA.VV., The craft and context of

translation (a critical symposium), Anchor Book, New York, 1964, p. 49.

Veja-se ainda: “The translator has to work in his own language exactly as the poet did in his, putting forth the same effort to organize the same images and to shape similar rythms. [...] This understood, translation may sometimes be more difficult than poetry itself. The translator must retrace the initial intuition, the root of the work; he must devote his whole intelligence and sensitivity to the research of what may have been, for the poet, a mere illumination”, Jean Paris, “Translation and creation” in The

craft and context of translation cit., p. 86.

66 “Sabe-se hoje que o trabalho literário propriamente dito consiste no

constante apagamento de quaisquer posições fixas da linguagem. Se assim é, a tarefa mais importante do tradutor consiste numa espécie de

recupe-ração da memória dessas posições apagadas. O tradutor instala-se na

oscilação semântica do texto não para a captar no seu movimento (esse é o estrito momento da leitura) mas para a fixar num padrão linguístico e retórico que só ele tradutor-indivíduo encontrou. [...] A ordem filológica da tradução é obviamente importante. Ela recorda-nos que a linguagem de qualquer–texto tem condições de tempo, lugar e circunstância que o tradutor não pode ignorar. Mas a literatura não se esgota nessas condições. Antes vive da sua constante fragilização, apontando sempre para o interior

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dos por Albano Martins têm um vago sabor familiar, que não está só no facto de terem sido vertidos para o português, mas reside também na capacidade de evocar algo conhecido, como uma aura perdida, desencadeando no leitor um processo instantâneo de reco-nhecimento. É como se a luz, ou a memória dela, oriunda daquela estrela extinta, ao entrar no caleidoscópio poético de Albano Mar-tins, readquirisse um fulgor puro e reconhecível. Versos como:

[...] Isso me faz tumultuar o coração no peito. Ver-te me basta, na verdade, para que

a voz me falte, a língua se me fenda e um repentino fogo subtil alastre

sob a minha pele, os olhos se me escureçam, os ouvidos me zumbam, o suor

me inunde, um arrepio me percorra toda. Fico mais verde do que a erva. Sinto

que vou morrer...67

chegam até nós com a mesma impressão fresca com que terão sido pronunciados por alguém chamado Safo, como se uma dimensão íntima do tempo tivesse ficado adormecida durante séculos para se revelar agora em forma de dejà vu, de um hipotético vivido, revivi-do poeticamente. Parece ontem, diríamos. E de facto cabe a nós, leitores, estimulados pela inefável beleza do poema, imaginarmos as circunstâncias em torno do instante de vida breve a que tivemos

É nesse interior que se joga a vitalidade da tradução, que é como quem diz, no espírito [...] da apropriação de um texto.”, Manuel Frias Martins, “A tradução literária e o futuro da literatura” in O escritor n.° 5, Lisboa, Março de 1995, pp. 116-117.

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acesso. Se foi exactamente assim que tudo se terá passado é, como sabemos, uma questão impossível, que importa muito menos do que o efeito obtido, e esse é mérito exclusivo do tradutor, que soube ainda apropriar-se neste caso de uma outra alteridade: a voz feminina68.

Talvez essa sensação de familiaridade se deva também a um ou-tro aspecto misterioso da linguagem muito caro a Albano Martins, que pode ser expresso numa imagem retirada de um romance sobre a tradução que aqui queremos lembrar69: “aproximei-me para ler o

que tinha escrito. Estava em branco, excepto alguns pontos de tinta verde que formavam uma constelação indecifrável”. Lembremos também o celebrado romance de Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante, em que no capítulo intitulado “No tapete de folhas iluminadas pela lua”, há uma cena particularmente bonita em que alguém observava as folhas das árvores a caírem no Outo-no, não orientando a sua atenção para as folhas em si, mas para os espaços entre elas, ou seja, para as estranhas formas comunicantes que elas sugeriam e recriavam no vazio. É assim que vemos Albano Martins, tradutor de textos literários da antiguidade: alguém capaz de entender a linguagem secreta e indizível, no momento em que está para cair irremediavelmente no esquecimento dos homens, alguém cujo “gosto pela eternidade, como notou Gumercinda Gonda,

68 “Dito de outra maneira, aquilo com que o tradutor tem verdadeiramente de

se confrontar é com a manifestação daquela indefinidade por onde o imaginário humano circula sob a forma de uma paradoxal mudez da linguagem que fala. Dito ainda de outra maneira, o que derradeiramente caracteriza a actividade do tradutor é o modo como ele gere individual-mente a matéria negra da literatura que a cada passo ele pressente no texto que vai lendo, intuindo a sua verdade mais oculta, imaginando a sua razão mais secreta”, Frias Martins, “A tradução literária e o futuro da literatura”, cit., p. 117.

69 “O verdadeiro problema para um tradutor [...] não é a distância entre os

idiomas ou os mundos, não é o calão, nem a indefinição, nem a música: o verdadeiro problema é o silêncio de uma língua – e não me preocuparei em atacar os imbecis que acreditam que um texto é tanto mais valioso quanto mais frágil e menos traduzível, nem aqueles que acreditam que os livros são objectos de vidro – porque tudo pode ser traduzido, mas não o modo como uma obra se cala”, Pablo de Sanctis, A tradução, Edições Asa, Porto, 2000, p. 77.

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tem a mesma força, que os homens sempre demonstraram, pela violência com que contestam a morte”70.

De facto, poder-se-á pensar que esta capacidade de ler os silên-cios de outras línguas, deve encontrar em Albano Martins uma maior predisposição que em outros poetas-tradutores, já que a sua poética tem sido unanimemente definida pela crítica como domina-da justamente pela “vocação do silêncio”. Eduardo Prado Coelho refere-se a um “efeito de silêncio” e, concretamente, ao “silêncio contrariado de uma poesia que a si própria se rasura, se mortifica, se extingue, no sentido de uma aridez irremediável”71; David

Mourão-Ferreira considera que a obra albaniana é marcada por uma “voluntária e conseguida brevidade”, e alude ao “poder evoca-tivo” e à “assombrada carga sugestiva que Albano Martins conse-gue extrair da mais rigorosa economia”172; Fernando Guimarães

cita a magnífica chave albaniana “pupila dum verso” como síntese da sua poética, caracterizada por um “marcado desenvolvimento imaginístico e metafórico” e por uma “nitidez de recorte” que vão “ao encontro da própria brevidade dos poemas que a compõem”73;

Eduardo Lourenço fala de um “bibelot sonoro” e do “lábil espaço entre dois silêncios, metáfora ou eco do de cada existência” e salienta a “exigência de um certo minimal” numa “poética do não dito e do impossível de dizer”74.

Neste sentido, Albano Martins será, antes de mais nada, tradutor de si próprio, na medida em que procura a forma poética concisa que alguém definiu “oracular” para dar expressão ao silêncio, subtraindo-se ao ruído babélico para procurar uma linguagem mais

70 Gumercinda Nascimento Gonda, “Paixão e Rigor em Albano Martins, o

poema fala ao poema” in Colóquio/Letras n.° 98, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Julho-Agosto 1987, p. 102.

71 Eduardo Prado Coelho, “Albano Martins: quem nos divide nos une e nos

separa” in A noite do Mundo, INCM, Lisboa, 1988, pp. 152-155.

72 David Mourão-Ferreira, “Vertical o desejo, de Albano Martins” in

Os Ócios do Ofício, Guimarães Editores, Lisboa, 1989, pp. 149-151.

73 Fernando Guimarães, “Um tempo de transição na poesia de Albano

Martins, Cristovam Pavia, Helder Macedo e Liberto Cruz” in A poesia

contemporânea portuguesa e o fim da modernidade, Caminho, Lisboa,

1989, pp. 65-67.

74 Eduardo Lourenço, “Albano Martins: entre dois silêncios” in Vocação do

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profunda75. E poder-se-ia também supor que tal como Ezra Pound

no seu famoso poema “The river merchant’s wife”, considerado a melhor tradução em absoluto do chinês para a língua inglesa no século XX, o poeta não pensa em termos de línguas distintas, mas de uma rede de palavra que ligam os indivíduos independentemen-te do seu idioma. Assim a logopeia, a famosa dança do inindependentemen-telecto por entre as palavras praticada por Pound76, seria utilizada por

Albano Martins para aceder a essa corrente subterrânea que percor-re as línguas, verbalizando-a através da tradução.

A ligação a Pound poderia aliás ser levada mais longe se pen-sarmos em certos princípios que são comuns aos dois poetas: a economia verbal, a disciplina emocional, o sentido crítico, a procu-ra meticulosa de uma imagem “concisa e fotográfica”, que apela à visualização ou ainda o gosto por formas orientais de poesia77.

Mas, ao contrário de Pound, que não sabia chinês e que confiou nos conhecimentos de Fenollosa, Albano Martins foi directamente à fonte, já que conhece bem o grego clássico, o que não é infelizmen-te o nosso caso. Por isso, não podemos ir mais longe sobre a tradu-ção que ele fez daqueles dez poetas gregos, para além de assinalar, de facto, a estranha sensação de familiaridade que a leitura desses “poetas antigos (e tão modernos afinal), confiados à língua portu-guesa” nos suscitou.

Citámos antes Calvino. Num ensaio de 1982 sobre a tradução literária o autor italiano afirmou que a literatura é como os vinhos: há os que suportam bem a viagem e os que a suportam mal. E que uma coisa é beber um vinho na localidade onde é produzido e outra

75 Recorro novamente a Jean Paris para esta definição de poesia longiniana

que me parece vir particularmente a propósito: “And I do think that a poet is first a translator, the translator of an unknown world to which fie gives a tangible form, sensitive expression. Art is less invention than discovery, for it is insofar as the artist becomes rooted in what Shakespeare called «nature’s infinite book of secrecy», that he can become a creator of our universe”, The craft and context of translation, cit., p. 85.

76 Conta-se que Pound levou seis meses para fixar uma imagem complexa e

instantânea em catorze palavras. Cf. Hugh Kenner, “Introduction”, The

translations of Ezra Pound, Faber and Faber, London, s/d., p. 10.

77 Relembre-se Com as flores do Salgueiro. Homenagem a Bashô, Edições

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é bebê-lo a milhares de quilómetros de distância78. Sendo o Douro

a terra de adopção do poeta, gostaria de pensar em Albano Martins como aquele estudioso de literatura clássica que, sempre que se sentava à mesa de trabalho e se preparava para ler a Odisseia, vinha-lhe invariavelmente à mente a imagem de um copo de vinho do Porto79. Cansado de tentar resistir àquela obsessão, resolveu

partir para Ítaca para observar in loco os lugares, referidos no poema. Passou o resto dos seus dias, feliz, a palmilhar a ilha de Ulisses e a procurar sítios para ler tranquilamente a sua Odisseia. Todos os lugares que encontrava rebaptizava-os de acordo com as leituras que ia fazendo: por exemplo, o que para os pescadores era só uma simples praia, para ele era o porto de Forquis onde Teléma-co desembarcara. De maneira que um dia, quando desapareceu do mundo dos vivos, não houve ninguém daquela povoação que con-seguisse imaginar aqueles lugares sem que não lhe viessem à mente as páginas abertas da Odisseia. Para nós é suficiente pensar que foi pelas mãos do Albano Martins que tivemos acesso à realidade por ele traduzida. E lemos o poema “Epidauro 1”, sobre a geografia

grega visitada pelo poeta-tradutor:

No palco vazio, o tempo é o único

actor. O drama escreve-se a si mesmo

com tinta escarlate.80

Esta reflexão sobre a efemeridade do drama humano traz-nos ao segundo aspecto da dedicatória do Albano Martins que gostaríamos de abordar: o de “confiar à língua portuguesa”. Todos conhecemos o princípio do panta rei segundo o qual ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio. Se, por exemplo, para Lorca, em Zamora, “Terminó la antigua historia romántica del río... No queda

78 Cf. Italo Calvino, “Tradurre è il vero modo di leggere un testo” in Saggi

(1945-1985), Amoldo Mondadori, Milano, 1995, pp. 1825-1831.

79 Cf. Maurizio Bettini, “Itaca” in Con i libri, Einaudi, Torino, 1998, pp.

23--32.

80 Albano Martins, “Epidauro 1” in Castália e outros Poemas (2001).

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nada de lo que antes viera el agua... La historia está quieta... Pero todavía el viejo y solemne Duero suenay ve combatiendo borrosa-mente a las grandes figuras de su romance”81, para Albano Martins,

na foz do mesmo rio, uma outra história renasce: “Há um rio cor-rendo entre as falanges dos dedos. [...] Onde tu vês a foz é a nas-cente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário, cegos pela luz que irradia, com seus holofotes de sombra, dos sóis submarinos”82.

Aquele princípio tão caro a Heraclito pode muito bem ser apli-cado à tradução, na medida em que se o rio – o texto – é sempre o mesmo, não é a mesma a relação que se estabelece com ele, o que não está meramente no facto de se chamar “Duero” ou “Douro”, facto de somenos importância que, como nos ensinou Saramago, não interessa aos peixes que sulcam esse mesmo rio, mas sim no facto de o texto – o rio – renascer diferente de cada vez que entra em contacto com uma nova sensibilidade poética. Aliás, esta metá-fora podia ser levada ainda mais longe no sentido de nos pergun-tarmos se também quem se banha no rio não se renovará, ou seja, se não é já uma outra personalidade que sai desse “banho poéti-co”83.

Já vimos como Albano Martins procura anular a distância pri-mordial trazendo o poema traduzido para a convivialidade do imaginário da sua língua, evitando o empalhamento do texto atra-vés de uma tradução filológica. No entanto, não deixamos de

81 Federico García Lorca, “Prosa – Impresiones y Paisajes” in Obras

Completas, Tomo III. Edición del Cincuentenario, Aguilar, Madrid, 1986,

p. 121.

82 Albano Martins, Rodomel Rododendro, Quetzal, Lisboa, 1989, p. 43. 83 João Barrento diz a propósito de David Mourão-Ferreira como tradutor de

poetas que “Talvez seja por isso que muitas das versões de Imagens da

Poesia Europeia se situam naquela zona de uma estranha familiaridade

que resulta de sabermos que elas vêm de outros lugares e tempos, mas sentirmos ao mesmo tempo que nos falam numa linguagem que não é nem a do original, nem a da língua portuguesa tout court, ou daquela sua variante, até hoje hipostasiada, mas não descrita, que seria a de um “português de tradutor”, resultado híbrido de um cruzamento entre os constrangimentos impostos pelo original e as limitações do próprio tradu-tor.”, “A mão esquerda de Orfeu” in Infinito Pessoal. Homenagem a David

Mourão-Ferreira, Colóquio-Letras n.° 145/146, Julho-Dezembro de 1997,

(40)

assistir nas suas traduções a uma aguda consciência do poema alheio e a uma declarada intenção de se manter fiel ao texto origi-nal. Veremos como as suas traduções procuram harmonizar estes dois aspectos aparentemente inconciliáveis, ou seja, como, enquan-to poeta-traduenquan-tor, consegue simultaneamente contribuir para a irradiação do poema alheio que verte para português, e não ficar na sombra daquela luz distante. Por outras palavras, como Albano Martins, mantendo-se fiel a si próprio, evita silenciar a voz original do poema.

Tomemos, a este propósito, a concisa definição do trabalho de tradução poética presente no poema “Assim são as algas”84. Aliás,

“Das palavras/ que aprendeste/ só uma/ não tem tradução./ Quando traduzes/ o amor, tu sabes/ que já é outro o seu nome” parece ser a resposta, quase 50 anos depois, e em forma de balanço de uma experiência de vida literária, a um outro poema escrito nos anos de

1951-52:

Em que idioma te direi este amor sem nome que é servo e rei? Como o direi? Como o calarei?

A conclusão disfórica do poema “Assim são as algas” (“Assim são as algas/ quando apodrecem.”) parece assim concluir-se com o regresso do poeta a si próprio, com a consciência da incapacidade, em última instância, de ser tradutor cabal da sua própria poesia interior: o poema verde como a alga também vai perdendo o seu viço em contacto com o ar, ou seja, vai perdendo aquele fulgor que tinha ao ser verbalizado. Mas mais do que a expressão do inefável de que a poesia fica sempre aquém, gostaríamos também de poder ler naqueles versos a consciência dos limites da tradução, que encontra ecos no facto de as traduções envelhecerem, ao contrário dos poemas em língua original, que são por definição mais velhos que aquelas, e paradoxalmente sempre novos, já que conservam intacta aquela aura simultaneamente remota e próxima que deles

84 Albano Martins, Escrito a vermelho (1999), As Escarpas do Dia, cit.,

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