• Non ci sono risultati.

PALAVRAS-CHAVE: Carta aberta

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Condividi "PALAVRAS-CHAVE: Carta aberta"

Copied!
24
0
0

Testo completo

(1)

ISBN 978-88-8305-127-2 DOI 10.1285/i9788883051272p119

http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento

CARTAS ABERTAS NA IMPRENSA DE MOSSORÓ-RN: ANALISANDO A TRAJETÓRIA DE UMA TRADIÇÃO DISCURSIVA

Lucimar Bezerra Dantas da SILVA

RESUMO

Este artigo resulta da pesquisa PIBIC/UERN intitulada Estudo da tradição discursiva

“carta aberta” em jornais de Mossoró, ao longo do século XX e tem como principal objetivo descrever e analisar o gênero carta aberta, a fim de conhecer as tradições discursivas que o constituem. O corpus, composto por 18 cartas abertas, foi coletado nos jornais O Mossoroense e O Comércio de Mossoró, entre os anos de 1904 a 1929. A análise visa a conhecer a trajetória desse gênero, buscando respostas para as seguintes questões: quais os propósitos comunicativos das cartas abertas? O que os temas das cartas revelam sobre o contexto sócio-histórico de Mossoró no inicio do século XX?

Quem são os interlocutores? Que tradições discursivas compõem esse gênero epistolar?

A fundamentação teórica baseou-se no modelo de Tradição Discursiva (TD), conforme Kock (1997) e Kabatek (2004a, 2004b) e nos estudos diacrônicos de gêneros textuais, entre os quais destacamos Zavam (2009); Silva (2012) e Longhin (2014). As análises mostraram que nas três primeiras décadas do século XX as cartas abertas tiveram destacada função social nos jornais mossoroenses, visando a diferentes propósitos como denunciar, reivindicar, criticar, defender-se de acusações etc., mas, a partir da década de 30 foram rareando e, praticamente desapareceram da imprensa jornalística local.

PALAVRAS-CHAVE: Carta aberta; Tradição Discursiva; História Social; História dos Textos.

Introdução

Alguns dos estudos que adotam o modelo das Tradições Discursivas (KABATEK, 2004a) têm buscado aliar conceitos advindos da Linguística Histórica, da Linguística Textual e da História Social a fim de conhecer as transformações que afetam os gêneros ao longo do tempo e identificar os traços linguísticos recorrentes, ou seja, as tradições discursivas que caracterizam cada gênero em particular. Os estudos diacrônicos de textos partem da premissa de que os gêneros apresentam características

(2)

que permitem aos leitores reconhecê-los e situá-los no tempo, pois seguem modelos historicamente convencionalizados. Essa questão tem relação com o que Coseriu (1979), citado por Kabatek (2004b), denominou de historicidade como tradição. A historicidade como tradição refere-se,

a todos as manifestações culturais repetíveis, incluindo as linguísticas. Trata- se aqui das tradições de uma comunidade, da recorrência na criação de objetos culturais, da possibilidade de se referir a fatos culturais anteriores, evocados em fatos novos por conta de semelhança funcional ou formal ou por parcial harmonia. Trata-se aqui daqueles objetos culturais disponíveis em uma comunidade para a repetição, a qual sempre inclui a mudança em duas direções possíveis: ampliando o modelo anterior ou particularizando-o.

(Kabatek, 2004b: 162-163)

É, portanto, a possibilidade de particularização dos modelos textuais da tradição que permite associar os textos às condições sócio-históricas-culturais em que foram produzidos.

Nesse sentido, a noção de (TD) deve ser entendida como um modelo textual, social e historicamente convencionalizado que determina as tradições de fala de uma determinada comunidade (Longhin, 2014) ou como afirma Costa (2008: 2) “toda forma de regularidade textual”. Essa perspectiva de estudo, portanto, possibilita relacionar a história da língua à história dos textos e à história social.

Na última década, as pesquisas diacrônicas de gêneros têm mostrado certa ênfase nos gêneros epistolares. Isso pode ser explicado pela quantidade e variedade de cartas disponíveis na imprensa jornalística desde o século XIX, como carta ao redator, carta do leitor, carta do redator, carta de notícias, carta aberta e carta-crônica etc. Além dos diversos gêneros de cartas publicados nos jornais, há ainda corpora de cartas pessoais e cartas administrativas disponíveis em acervos públicos e nos bancos de dados do PHPB (Projeto de História do Português Brasileiro) e do PHPP (Projeto da História do Português Paulista).

Dentre as pesquisas que abordaram gêneros epistolares numa perspectiva diacrônica podemos citar Andrade (2008a, 2008b) que analisou cartas de leitores;

Brandão, Andrade e Aquino (2009) que estudaram as tradições discursivas em cartas da administração privada e cartas particulares dos séculos XVIII ao XXI no Estado de São Paulo; Zavam (2009) que analisou a trajetória do editorial em jornais cearenses, considerando que os editoriais, inicialmente, apresentavam estrutura de carta; Silva

(3)

norte-rio-grandenses nos séculos XX e XXI; e Melo (2014) que identificou as fórmulas textuais das cartas oficiais norte-rio-grandenses no período de 1713 a 1931.

Nesse contexto, pretendemos contribuir com as pesquisas na área, estudando um gênero epistolar ainda pouco investigado.

Aspectos metodológicos

A coleta das cartas foi realizada no arquivo do Museu Lauro da Escóssia, na cidade de Mossoró-RN, em dois jornais: O Mossoroense, fundado em 187210 e O Commercio de Mossoró, fundado em 1904. Como as cartas abertas apresentam muita semelhança com as cartas de notícias11 e com as cartas do redator, decidimos estabelecer como critério para selecionar corpus a identificação do gênero como “carta aberta” (cf. Figura 1). Outro critério utilizado para coletar o corpus foi considerar a sequência textual predominante. Como a carta aberta se insere entre os gêneros jornalísticos opinativos (Bonini, 2003; Silva, 2002), levamos em conta a predominância da sequência textual argumentativa nos textos identificados como cartas abertas. Com base nesses critérios, constituímos um corpus com 18 cartas.

Após a coleta, para a qual foi empregada a técnica da fotografia, os textos foram submetidos à edição semidiplomática (cf. Figura 1), conforme normas estabelecidas pelo PHPB. Nesse sentido, mantivemos a grafia, a acentuação, o uso de maiúsculas e minúsculas e a pontuação originais. Eventuais erros de composição foram marcados com (sic) logo após o vocábulo e remetidos para nota de rodapé a fim de registrar a lição por sua respectiva correção. Por fim, a divisão das linhas do documento original foi preservada, pela marca de uma barra vertical entre as linhas e pela marca de duas barras verticais para indicar a mudança de parágrafo.

Para a análise dos dados, adotamos o modelo proposto por Zavam (2009) que estabeleceu duas categorias teórico metodológicas para a análise de tradições discursivas: o contexto e o texto. O contexto inclui três categorias analíticas: a ambiência, os interlocutores e a finalidade comunicativa. O texto também possibilita a análise de três categorias: o conteúdo, a norma e a forma.

10 O Mossoroense, ainda em circulação, é o terceiro jornal mais antigo do Brasil.

11 O gênero carta de notícia era utilizado pelos correspondentes do jornal para enviarem notícias de outras cidades da região.

(4)

Entendemos que esse modelo permite ao pesquisador uma ampla visão da história de um determinado gênero numa perspectiva diacrônica, uma vez que viabiliza analisar questões específicas da língua além de elementos que dizem respeito à história social em que o texto foi produzido e circulou.

Figura 1: Carta aberta no jornal e edição semidiplomática

Fonte: Jornal O Mossoroense, (Edição de 08 de agosto de 1908)

Portanto, para conhecer a trajetória desse gênero textual em dois jornais da cidade de Mossoró-RN, a análise, com base nas duas categorias teórico metodológicas texto e contexto, se propõe a responder as seguintes questões? Quais os propósitos comunicativos das cartas abertas? O que os temas das cartas revelam sobre o contexto sócio-histórico de Mossoró no inicio do século XX? Quem são os interlocutores? Que tradições discursivas compõem esse gênero epistolar?

É importante ressaltar que no projeto de pesquisa nosso intuito era estudar a carta aberta ao longo de todo o século XX, porém, à medida que os dados foram sendo coletados, verificamos uma diminuição do gênero, de modo que, a partir da década de 30, não localizamos mais nenhum exemplar de carta aberta.

Isso mostra que, assim como ocorre com todos os gêneros, as cartas abertas, bastante utilizadas pela comunidade letrada de Mossoró, no inicio do século XX, para atender a diferentes propósitos, também sofreram transformações e, provavelmente foram substituídas por outros gêneros. Isso reforça a tese de que as transformações

Carta aberta

Ao Exmº GOVERNADOR DO ESTADO

Este pequeno Estado, que V. | Excia.

actualmente governa, está | atravessando uma das crizes mais | terríveis que imaginar se pode. || A secca, com seu fúnebre cor- |teja (sic) de mizeria, assola-o, devas- | tando tudo. || Tremenda situação

! dolorozo | acontecimento ! || Os sertanejos acostumados à | creação e plantação, abandonam | as suas terras, agora requeimadas | pelo sol causticante, em busca de | outros logares, onde a Natureza | os proteja. Grande è o numero | dos que restituidos de recursos, | morrem em seus cazebres ou pe- | las estradas, soltando justas incre- | pações contra os poderes publi- | cos da nação.

(5)

eficientes para mediar a comunicação humana. Nesse sentido, os gêneros transformam- se, passam por diferentes processos de transmutação, como demonstrou Zavam (2009), podem cair em desuso e ressurgirem depois de sofrerem mudanças, a fim de atender a novos propósitos, mas também podem desaparecer, quando deixam de ter utilidade na interação humana.

As tradições discursivas e a história dos textos

O conceito de Tradição Discursiva (TD) teve como ponto de partida, em fins do século passado, as reflexões de Coseriu (1979; 1980) acerca dos três níveis de linguagem - universal, histórico e individual - no âmbito da Linguística Românica Alemã. A divisão coseriana entre os três níveis do falar foi o ponto de partida para que Koch (1997), influenciado pelas reflexões de Schlieben-Lange (1983), desenvolvesse o conceito de TD.

Segundo Coseriu (1980), a linguagem, relacionada ao saber elocucional, é uma atividade comum a todos os homens capazes geneticamente de falar. Essa capacidade inerente ao homem diz respeito ao nível universal. No entanto, quem fala utiliza uma língua natural específica e isso pressupõe o saber idiomático. Portanto, saber uma língua concreta se insere no nível histórico. Quando comparamos usuários de uma mesma língua, podemos perceber que eles apresentam diferentes competências para elaborar textos. Essa competência diz respeito ao nível individual e opera o saber expressivo.

Esquematicamente, os níveis de linguagem, segundo Coseriu, podem ser representados da seguinte forma:

Quadro 1 - Níveis da linguagem, segundo Coseriu

Níveis Atividade Tipo de saber Produto

Universal atividade do falar em geral saber elocucional totalidade do falado Histórico língua histórica particular saber idiomático (língua abstrata)

atual/individual Discurso saber expressivo “texto”

Fonte: Coseriu (1980: 93)

A teoria da linguagem coseriana apresenta pontos essenciais que podem ser resumidos da seguinte forma:

(6)

a) Embora os três níveis de linguagem sigam regras próprias, eles são interdependentes;

b) O nível individual não é mera realização de uma historicidade determinada, pois, enquanto há poliglotas que realizam diferentes tradições históricas, não há nenhum indivíduo que realize essa ou aquela língua (tradição histórica) em sua totalidade;

c) Um texto não corresponde a uma só historicidade, pois pode apresentar elementos de várias tradições linguísticas.

A duplicação do nível histórico e o conceito de TD

O conceito de TD desenvolveu-se a partir de questionamentos feitos por Schlieben-Lange (1983) sobre o funcionamento do nível individual da linguagem proposto por Coseriu (1979; 1980). A autora defende que o discurso não requer somente o saber expressivo, pois enquanto cada discurso é único, o saber expressivo permite a possibilidade de reprodução.

Assim, para não haver dúvidas entre o nível individual e o saber expressivo, e entre o saber idiomático e o saber expressivo, Koch (1997) propôs modificar o esquema coseriano, ampliando o nível histórico, conforme quadro a seguir:

Quadro 2 - Níveis e domínios linguísticos, segundo Koch

Nível Domínio Tipo de regras

Universal atividade do falar regras elocucionais

Histórico língua histórica particular regras idiomáticas tradição discursiva regras discursivas atual/ individual discurso

Fonte: Koch (1997:45)

Ao relacionar as regras aos domínios da linguagem, Koch (2008) defende que a definição dos tipos de regras contribui decisivamente para a compreensão da natureza do discurso. Assim, ao domínio da atividade de falar correspondem as regras

(7)

elocucionais; ao domínio da língua histórica particular correspondem as regras idiomáticas e ao domínio das tradições discursivas correspondem as regras discursivas.

Para Koch (2008), o domínio do discurso não possui regra específica, pois nele os falantes fazem uso ao mesmo tempo de regras elocucionais, idiomáticas e discursivas.

Uma das principais contribuições da duplicação do nível histórico foi mostrar que a historicidade das tradições discursivas é diferente da historicidade das línguas históricas. Assim, as línguas históricas definem as comunidades linguísticas e as comunidades linguísticas (profissionais, religiosas, literárias) definem as tradições discursivas (Koch, 1997, 2008).

Portanto, como cada TD corresponde a um conjunto histórico de discursos individuais, para Koch (2008) não é coerente dizer que o saber expressivo está situado no discurso individual. Os falantes e ouvintes seguem regras históricas (discursivas) e, mesmo que inovem no nível do discurso, ao transgredirem regras idiomáticas, há uma obediência às regras elocucionais.

Para Kabatek (2004a), a duplicação do nível histórico permite ver a língua como sistema gramatical e lexical e como TD. Isso significa que todo ato de fala ou enunciado que apresente uma finalidade comunicativa concreta passa por dois filtros antes de se concretizar em forma de enunciado: o filtro da língua, enquanto sistema e norma, e o filtro das TD. Em decorrência disso, é possível afirmar que as TD compartilham a mesma historicidade das línguas, como fica claro na figura a seguir:

Figura 2 - Tradições discursivas (TD)

Fonte: Kabatek (2004a:16)

Considerando o esquema da figura 1, pode-se perceber que o enunciado resultante de uma finalidade comunicativa passa, ao mesmo tempo, pelos filtros da historicidade da língua e da historicidade das TD. Um enunciado como “meus pêsames”, por exemplo, considera aspectos da historicidade da língua portuguesa e da

ENUNCIADO

OBJETIVO COMUNICATIVO

LÍNGUA PARTICULAR (SISTEMA E

NORMA) TRADIÇÃO DISCURSIVA

(8)

historicidade de uma tradição de fala usada para cumprimentar os parentes de um ente que faleceu e que se repete ao longo do tempo.

Embora Kabatek (2004b) admita que as tradições discursivas compartilhem a mesma historicidade das línguas, ele esclarece que há diferenças entre a historicidade das línguas e a historicidade das TD. A primeira coincide com a historicidade do ser humano e está condicionada à historicidade da língua. “O indivíduo falante incorpora na aquisição da linguagem uma língua particular e ele a recria dentro de si como técnica aberta, a qual lhe permite a ação linguística criativa” (KABATEK, 2004b: 162 – grifo do autor). A historicidade das TD, por sua vez, está diretamente relacionada à história dos textos e à história cultural dos povos.

Sobre a historicidade dos textos, Kabatek (2004b) lembra que todo texto estabelece uma relação de tradição com outros textos. Essa relação pode se dar pela repetição de uma determinada finalidade textual, de um determinado conteúdo ou de traços formais. Isso significa que a produção de um enunciado – uma saudação, por exemplo - requer, ao mesmo tempo, conhecimento linguístico e conhecimento sobre a TD de saudar em determinada cultura.

Caracterizando o gênero carta aberta

A carta aberta é um gênero opinativo que se insere na esfera jornalística e tem por finalidade comunicativa apresentar e discutir um tema de interesse público ou pessoal, cujos propósitos comunicativos visam a defender um ponto de vista, uma ideia ou um projeto; reivindicar; denunciar pessoas; acusar pessoas; defender-se de acusações; criticar posicionamentos políticos; elogiar etc.

A carta aberta, seguindo a norma da maioria dos gêneros epistolares, apresenta os seguintes elementos: abertura (saudação inicial, nome do destinatário); texto (desenvolvimento do conteúdo temático) e fechamento (despedida, assinatura do remetente e, eventualmente, local e data). Porém, como frisou Marcuschi (2002:30) “um gênero pode não ter uma determinada propriedade e ainda continuar sendo aquele gênero.” Isso significa que a ausência de algum desses elementos não inviabilizará a definição do gênero como carta aberta.

(9)

As cartas abertas podem vir assinadas por um único indivíduo ou grupo de pessoas que possuam interesses comuns, como, por exemplo, membros de um partido político, instituições públicas ou privadas, sindicatos, entidades não governamentais, entre outros, para expor ao público leitor questões que requerem um posicionamento, que seja de adesão ou de repúdio.

Os autores de cartas abertas são, geralmente, indivíduos bem relacionados na sociedade em que se inserem, com bom nível de escolaridade e que possuam poder de influenciar.

Quanto ao conteúdo temático, uma carta aberta pode abordar qualquer tema que suscite questionamentos e que seja de interesse da coletividade, embora interesses individuais também possam ser expostos e discutidos por meio dela.

Com relação aos meios de divulgação, observamos que, se antes o jornal impresso era o suporte mais utilizado para a publicação de cartas abertas, hoje ele foi substituído pela internet. Isso pode ser explicado pelo fácil poder de disseminação dos fatos na mídia digital, pela possibilidade de repercussão e resposta imediata do leitor.

Essa dinamicidade pode resultar numa mobilização mais eficiente da população em torno do assunto exposto.

O contexto sócio-histórico da cidade de Mossoró no início do Século XX: o conteúdo temático, o propósito comunicativo e os interlocutores.

Para analisar o contexto sócio-histórico das cartas que constituem o corpus, selecionamos três categorias: o conteúdo temático, o propósito comunicativo e os interlocutores, para conhecer que temas são tratados nessas cartas, quem são seus autores, para quem se destinam e com quais propósitos comunicativos.

Com relação ao conteúdo temático, é importante destacar que a problemática da seca é o ponto de partida para a publicação de várias das cartas que constituem o corpus, isso porque a primeira década do século XX ficou marcada pela ocorrência de sucessivas secas na região Nordeste do Brasil.

O ano de 190412 também não choveu e os governantes tentavam encontrar soluções para amenizar o sofrimento do povo. Para conhecer a realidade da seca e

12 Das 18 cartas que constituem o corpus, 09 foram publicadas em 1904.

(10)

estudar saídas, foram enviadas às regiões afetadas comissões de técnicos e engenheiros de obras contra as secas. Uma das prioridades era viabilizar a construção de reservatórios de água. Silva e Medeiros (2008) afirmam que existia na época a crença de que a açudagem era uma solução imediata para amenizar os efeitos da seca, pois mantinha o sertanejo na sua terra, evitando o êxodo para as cidades litorâneas e garantia, por meio da irrigação em tempos de seca, a produção agrícola.

A cidade de Mossoró era um importante polo comercial e havia um grupo de ricos empresários e comerciantes interessados em alocar recursos do governo federal para a construção de uma ferrovia que interligasse o porto de Areia Branca13 a Mossoró e de Mossoró a outros centros consumidores, a fim de favorecer o escoamento da produção de sal e de outros produtos produzidos na região.

Cientes do objetivo da Comissão chefiada pelo Dr. Sampaio Correia, o redator do jornal O Mossoroense, em nome de interesses do grupo de empresários, publicou no período de 23/03 a 12/06 de 1904 uma série de cinco cartas abertas, destinadas ao referido engenheiro. O propósito era convencer chefe da Comissão de que a construção de ferrovias era, economicamente, mais viável do que a construção de açudes, como fica claro no argumento abaixo, extraído da carta aberta publicada em 23 de março de 1904:

a) || Como se não fôra bastante o dis- | pendio de grandes sommas com soc-

| corros publicos, a conhecida açuda- | gem, que sem agua tem levado mui- | to dinheiro agua abaixo, e as peque- | nas estradas de ferro para recreio | das Capitaes e dos Capitalistas, mais | têm aggravado, em pura perda, a | situação financeira do nosso queri- | do Paiz. || Os açudes, que sô contêm aguas | quando chove, reclamam constantes | despezas para a sua conservação, sem | que, em tempo algum, proporcionem | uma renda qualquer.

Na terceira carta aberta, publicada em 17 de maio de 1904, o produtor apresenta argumentos para desqualificar a prática da açudagem como alternativa para sanar os efeitos da seca:

b) || Força, pois, é concluirmos que | reservatorios d’agua não são remédios | eficazes contra as seccas e menos | podem ser medidas de prevenção | contra estas, desde que a utilidade | desses depósitos depende dos in- | vernos e se estes houvesse aquel- | les não se manifestariam.|| Ter depositos d’agua, mas não | ter agua para botar nesses depositos, | vale o mesmo que ter bolso pra | botar dinheiro e não ter dinheiro | para botar no bolso.

(11)

Em outra carta aberta, o produtor mostra dados concretos sobre as vantagens econômicas das estradas de ferro. Ele defende que o desenvolvimento do país dependia da construção de ferrovias e que, ao contrário dos açudes, as ferrovias trariam a riqueza que ajudaria a tirar a região da miséria em decorrência da seca, conforme trecho da carta aberta de 16 de abril de 1904.

c) || No nosso humilde entender, ja | que não podemos, durante as esta- | ções dos invernos, prender ou des- | viar a ventos allísios, somente gran- | des estradas de ferro que liguem o | norte ao sul da Republica, e cortem | as differentes regiões do Brasil, po- | derão trazer o remedio que cure os | males que as seccas produzem, e de | males eguaes nos preserve.

Na última carta aberta da série, a mais extensa das cinco, publicada em 12 de junho de 1904, há uma menção ao Sr, Graff. Tratava-se do rico comerciante suíço Johann Ulrich Graff que se fixou em Mossoró em 1866 e idealizou a construção de várias ferrovias interligando cidades do Estado do Rio Grande do Norte e também de grandes ferrovias para interligar as regiões do Brasil. Foi ele que realizou estudos para mostrar a viabilidade de uma ferrovia ligando o Porto de Areia Branca a Mossoró e a outras cidades do interior do Rio Grande do Norte14.

Esses estudos consistiam em levantamentos sobre a capacidade de navegação da Barra, onde ficava o Porto de Areia Branca; sobre o relevo plano, propício à construção de uma ferrovia; sobre a existência de madeira nas margens da futura estrada de ferro e sobre as riquezas produzidas nas cidades que seriam beneficiadas pela ferrovia. Uma ferrovia era considerada um negócio excelente para a economia da região, pois facilitaria o escoamento da produção e viabilizaria a importação.

Ulrich Graff fez até os cálculos comparando os valores que seriam gastos pelo governo para construir açudes e estradas e ferro. Se intuito era provar que enquanto as ferrovias dariam lucro, os açudes dariam prejuízo, pois só seriam viáveis se houvesse chuva. Na conclusão dessa última carta aberta da série enviada a Sampaio Correia, há uma tentativa clara de convencer o chefe da Comissão de que a construção de ferrovias seria a solução para acabar com a pobreza:

d) ||Para não nos prolongarmos mais | em apreciações que, de certo, não | escaparão a vossa reconhecida com- | petencia e a de vossos companheiros | de comissão, permitti que adian- | temos, pelo conhecimento proprio | que

14Mais informações sobre as ferrovias idealizadas por Ulrich Graff estão disponíveis em http://www.estacoesferroviarias.com.br/rgn/ulrick.htm e em http://blogdetelescope.blogspot.com.br/

2013/01/o-sonho-do-graff-1915-mossoro-rn.html Acesso em 14/09/2015

(12)

temos das regiões que devem | ser apanhadas e servidas pela pro- | jectada ferro-via, que esta pouparà | á Naçao as grandes despezas com | socorros públicos, porque depois | d’ella serão nenhuns os efeitos das | seccas; que augmentarão de modo | incalculável as industrias pastoris e | agrícolas as principaes d’essas regiões; | que novas industrias de logo ahi se | desenvolverão; e que, em pouco | tempo, ver-se-á este povo faminto | prodigalisando largos favores, em | vez de mendigar a escassa esmola. (O Mossoroense: 12/06/1904)

O flagelo da seca também é mencionado em uma carta aberta, publicada em 08 de agosto de 1908, assinada por salineiros da cidade de Macau e destinada a Alberto Maranhão, o então governador do Rio Grande do Norte. Os salineiros reclamam da crise econômica pela qual o Estado atravessa em consequência da seca e afirmam que a indústria do sal, prejudicada pela alta de impostos, encontra-se numa severa crise. A crise na indústria salineira agrava ainda mais a economia local, pois deixa de ser uma alternativa de trabalho para os flagelados da seca, como acontecia em outros tempos.

Os salineiros que assinaram a carta têm como propósito denunciar que, apesar da grande produção de sal, os donos de salinas foram prejudicados pelo contrato assinado entre o governo do Rio Grande do Norte e a Companhia Comércio e Navegação. O aumento de impostos fez o produto potiguar ficar menos competitivo, uma vez que a referida Companhia monopolizava o sal e podia comprá-lo de outros estados por um preço mais baixo. Essa situação é mencionada em várias passagens da carta, como, por exemplo, o trecho selecionado abaixo:

e) ||Os Snrs. Tertuliano Fernandes | & C. e Cel. Francisco Tertuliano, | possuem importantes salinas nes- | te estado com grande Stok de | sal, veêm- se na dura contigencia | de abandonarem suas proprieda- | des, soffrendo consideraveis pre- | juizos, para irem explorar salinas | em outros estados onde possam | livremente exercer a sua indus- | tria, e livre estejam do arbitrio | da Companhia Commercio e | Navegação.(O Mossoroense, 08 de agosto de 1908)

Em várias cartas abertas publicadas nos primeiros dez anos do século XX, há denúncias sobre o abandono por parte dos governantes que nada fizeram para melhorar a convivência do sertanejo com a seca. Em 11 de Agosto de 1907, o Commercio de Mossoró publicou uma carta aberta escrita por Orlando Correia, um acadêmico de direito, ao Capitão Bento Praxedes, então redator chefe do mencionado jornal. A carta

(13)

afetada pela seca, pedir a Bento Praxedes para continuar lutando em favor dos sertanejos, criticar o antigo Presidente, Rodrigues Alves, e elogiar Afonso Pena, o Presidente do Brasil na época.

Conforme as palavras do produtor, o governo de Rodrigues Alves foi omisso em relação à grave situação do sertão nordestino em decorrência das secas de 1903 e 1904, conforme trecho a seguir:

f) || Aquelles dois anos calamitosos, sem | exemplo talvez nos annaes da histo- | ria das seccas no sertão foram por si | sós, bastantes para darem a prova | provada do quanto foi nullo e nefasto | o governo do Sr. Rodrigues Alves que | ficou indelegavelmente perpetuado na me- | moria do sertanejo que ainda hoje o | maldiz.

O ano de 1919 também foi seco, como atesta a carta aberta publicada no Mossoroense em 23 de abril e assinada por um grupo de empresários e políticos influentes da cidade de Mossoró: Jerônimo Rosado (Presidente da Intendência); Vicente da Mora e Cia.; P. P. de Tertuliano Fernandes e Cia.; Dr. Raphael Fernandes Gurjão;

Camilo Figueiredo e Cia.; M. F. do Monte e Cia.; e, Luiz Colombo Ferreira Pinto. Na carta, o propósito é reivindicar das autoridades a construção de obras contra as secas, conforme trecho a seguir:

g) O PROLONGAMENTO DA ESTRADA DE FERRO DE | MOSSORÓ até Petrolina, a construcção DO AÇUDE DO | CANTO DA LAGOA NO RIO UPANEMA15, e da barragem | de pedrinhas, no Rio Mossoró, são obras, para nós, | utilíssimas, precursoras do futuro de nossa terra, e | que executadas agora, virão implantar benefícios in- |calculáveis á pobreza e ao município. (O Mossoroense: 23/04/1919)

É importante mencionar que, durante os anos de seca, a cidade de Mossoró era duramente afetada, pois, embora a agricultura não fosse a principal fonte de subsistência da população, era para esse Município que os flagelados emigravam em busca de meios de subsistência.

As cartas abertas também eram escritas com o propósito de fomentar as intrigas entre membros da imprensa local. As discordâncias eram resolvidas com publicações pouco amistosas, nas quais se abusava de atributos pejorativos para desqualificar o oponente. Um exemplo disso é a carta publicada no Comércio de Mossoró, em 12 de junho de 1904, cujo destinatário era o articulista do Correio de Macau, Antero de Lima.

O autor da carta aberta, o Senhor J. Martins de Vasconcelos, acusa Antero de Lima de

15 Grifos do Original

(14)

ter proferido injúrias contra sua pessoa e contra comerciantes de outras cidades. A carta é escrita em tom agressivo e irônico:

h) ||Ao incógnito Antero de Lima || Muito bem! Seu Anthero, muito bem!

|| Li suas pestilencias infiltradas | no numero 6, de 22 de Maio, do | Correio de Macau e não tivesse eu | o bastante escrupulo de desenfec- | tar o seu pacote, certo teria sido | victima do vibrião perigoso e re- | pugante de sua escrophulosa lin- | guagem ... viperina e tragica!...

No final da carta, há uma justificativa sobre o propósito da publicação:

i) ||Não foi somente pela flagrante | injustiça feita á riqueza e ao com- | mercio que tomei o arduo e santo | encargo de advogar ex-officio mi- | nha terra e meus visinhos; não: | foi tambem o desejo de illibar a | reputação e os costumes desse po- | vo sempre bom e ordeiro por indo- | le e por natureza, e que vi vilmen- | te insultado em linguagem de ar- | rieiro por algum pernostico qual- | quer. Quanto ao movimento com- | mercial, industrial e outros, esta- | mos sempre na vanguarda, não há | duvida e só o pode contestar o des- | peito mal contido.

Questões de ordem pessoal como desavenças familiares ocasionadas por escolhas políticas, desentendimentos sobre questões de demarcação de terras, defesa da honra, denúncias sobre badernas e maus costumes da população também são temas presentes nas cartas abertas que constituem o corpus desta pesquisa. Fazendo um paralelo com a realidade atual, podemos afirmar que as cartas abertas tinham função semelhante a que as redes sociais têm hoje.

Numa carta escrita pelo Senhor Francisco Borges de Andrade e publicada no Mossoroense em 11 de fevereiro de 1916, ele procura defender-se de calúnias e boatos contra sua honra e sua dignidade. Acusado de roubo e se dizendo inocente, escreve com o seguinte propósito:

j) ||Lançando estas linhas pela im- | prensa não tenho o intuito de pro- | testar contra os vis calumniadores, | porque esses merecem o meu | despreso, mas é provocar as auto- | ridades aquém o caso competir | pra apurarem a imputação que | me fazem. || Provoco e provocarei sempre; | não temo o rigor da justiça. Abram- | se inqueritos, ouçam-se os empre- | gados do porto, do trapiche, das | repartições, façam-se buscas, appre- | nsões, tudo que o caso exigir | e apure-se o crime ou a inno- | cencia.

Há até uma carta aberta destinada ao governador do Estado do Rio Grande do Norte, na qual um funcionário público denuncia o administrador da Mesa de Rendas Estaduais de Areia Branca de não lhe fornecer uma certidão, necessária para fazer o

(15)

controle de mercadorias e proibir o contrabando. Essa carta, assim como outras cartas abertas que constituem o corpus analisado, foi publicada numa seção do jornal intitulada

“SOLICITADAS”, porém com a seguinte ressalva antes do texto: “Sem responsabilidade da Redacção”. No trecho abaixo, selecionamos uma passagem em que o autor explica como o fato ocorreu:

k) ||Requeri novamente por cer- | tidão o teor d’aquellas, petição | e certidão, e SS. o Snr. Admi- | nistrador Theophilo Brandão,| indeferindo minha petição, bra- | dou enfurecido que podiam | mandar ao Thesouro do Estado | quantas denuncias quisessem | que ellas serviriam para miste- | res que a decencia manda calar. (O Mossoroense, 19 de outubro de 1904)

A análise das três categorias do gênero carta aberta pode ser melhor visualizada no quadro a seguir:

Quadro 3: Conteúdo temático, interlocutores e finalidade Cartas abertas (1904 a 1929)

Jornal Data da Publicação

Conteúdo(s) temático(s)

Interlocutores Finalidade (s) Emissor Destinatário

J 1

23/03/1904 16/04/1904 17/05/1904 24/05/1904 12/06/1904

Seca, açudagem

e ferrovia Redator Dr. Sampaio

Correia

Convencer Reivindicar

J2

24/04/1904

Intriga entre membros da imprensa local

J. Martins de Vasconcellos

Redator Bento Praxedes

Denunciar Defender

J2 12/06/1904

Intriga entre membros da imprensa local

J. Martins de Vasconcellos

Antero de Lima

Criticar, acusar e defender-se J2 10/07/1904 Crítica literária S. Fernandes J. Martins de

Vasconcellos

Elogiar

J1 19/10/1904 Denúncia contra funcionário público

Manoel Lúcio de Gois

Governador do Estado;

Inspetor do Tesouro e leitores

Denunciar, acusar e esclarecer

(16)

J2 11/08/1907 Críticas ao governo federal e seca

Orlando Correia Capitão Bento Praxedes

Elogiar, denunciar e acusar

J2 10/11/1907 Política Um amigo Orlando

Correia

Elogiar

J1 08/08/1908 Crise do setor salineiro

Salineiros Governador do estado

Denunciar, reclamar J1 10/09/1911 Política Justiniano Lins

Caldas

Cel Manoel Lins Caldas

Esclarecer;

defender-se J1 13/03/1912 Demarcação de

terras

João Lins

Caldas

Redator do Jornal

Denunciar;

esclarecer J1 11/02/1916 Boatos, calúnia Francisco B. de

Andrade

Caluniadores Esclarecer

J1 10/10/1917 Costumes e

tradições

Ignacio Velho Jerônimo Rosado

Esclarecer;

denunciar; criticar

J1 23/04/1919 Ferrovia e

açudagem

Jerônimo Rosado e outros

Autoridade

Política Reivindicar J1 14/06/1929 Problemas

policiais

Major Raymundo Rubira

Redator do Jornal

Esclarecer;

defender-se Legenda: J 1 – O Mossoroense

J. 2 – Commercio de Mossoró

Como podemos ver, embora os temas das cartas abertas sejam variados, a maior parte aborda problemas vivenciados pela população da época, principalmente àqueles ocasionados pela seca. Quanto às finalidades das cartas, como a situação da população era difícil, as mais recorrentes são reivindicar, criticar, denunciar. Esses propósitos podem justificar o fato de as cartas serem destinadas a pessoas influentes e com poderes para resolver os problemas denunciados ou atender às reivindicações feitas pelos produtores em favor da população ou em favor próprio.

Ainda com relação às finalidades, o corpus contém cartas abertas cujos autores expõem problemas de ordem pessoal. Nesse caso as principais finalidades identificadas são defender-se de acusações e esclarecer fatos. Fica clara a tentativa desses emissores de contar para a opinião pública sua versão dos fatos para conseguir a adesão dos leitores, principalmente quando haviam sido vítimas de boatos e de acusações contra a

(17)

Tradições discursivas que constituem as cartas abertas

Para identificar e descrever as tradições discursivas que constituem as cartas abertas, partimos da definição de Kabatek (2004a, p. 7) que entende Tradição Discursiva como:

a repetição de um texto, de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.

A primeira TD que identificamos diz respeito à própria composicionalidade, ou seja, aos elementos normativos dos gêneros epistolares. As cartas abertas conservam em sua estrutura os elementos prototípicos que ajudam a identificar o gênero:

Abertura – seção utilizada para saudar e identificar o destinatário da carta. Nas cartas abertas analisadas, quando o destinatário é uma autoridade e há um grau de distanciamento entre os interlocutores, a formalidade é caracterizada pelo emprego do pronome de tratamento, do título honorífico, seguido pelo nome (Ilustre Dr.

Sampaio Correia); ou do pronome de tratamento seguido do cargo ocupado pelo destinatário (Exmo. Governador do Estado; Sr. Inspetor do Tesouro; Ilmo. Senhor Redator; Ilmo. Senhor. Gerente de O Mossoroense etc.)

Porém, quando não há distanciamento entre os interlocutores, os pronomes de tratamento são substituídos por atributos que dão pistas sobre a relação interpessoal existente: “Amigo dos sertões e dos sertanejos Capitão Bento Praxedes”; “Meu distinto amigo acadêmico de direito Orlando Correia”; “Meu irmão Cel. Manoel Lins Caldas.”;

“Meu Jerônimo”.

Em uma das cartas analisadas, o pronome de tratamento foi substituído pelo adjetivo “incógnito”, cuja função é desqualificar o destinatário . Em outra, publicada em O Mossoroense na edição de 11 de fevereiro de 1916, a abertura prototípica é substituída pelo título: “A Calumnia e os Calumniadores”, uma vez que o emissor desconhecia o autor dos boatos espalhados na cidade contra sua pessoa, como fica claro na passagem a seguir:

(18)

l) || Baldados esforços tenho empre- | gado para descobrir o infame ca- | lumniador e apurar a sua crimina- | lidade ou desvendar o mysterio da | imputação, mas o covarde, o infa- | me occulta-se com a capa do ano- | nymato do OUVI DIZER, OS | FILHOS DE CANDINHA DIZEM | e assim vai assassinando a repu- | tação indefeza.

 Texto – seção em que se encontram o conteúdo da carta e o(s) propósito(s) a que visam atender.

 Fechamento – nessa seção podem aparecer uma expressão de despedida, a assinatura e o local e data.

A análise mostrou que as cartas abertas escritas pelo redator do jornal, não apresentam assinatura e local e data. Como, por exemplo, as cinco cartas abertas remetidas ao Dr. Sampaio Correia. Não são assinadas e apenas na última delas (publicada em 12 de junho de 1904) aparece a expressão de despedida “Preza aos céos”, uma tradição discursiva recorrente nas correspondências da época.

Do total de cartas analisadas, em 09 (nove) identificamos na seção de abertura o pronome de tratamento condizente com o papel social ocupado pelo destinatário. Nas demais o nome do destinatário é antecedido por um atributo: “Incógnito”; “Meu caro amigo”; “Amigo do sertão e dos sertanejos”; “Meu distinto amigo”. A maioria das cartas abertas traz a assinatura do emissor, local e data que situam o texto no momento da produção.

Algumas expressões de despedida encontradas em cartas pessoas e em cartas ao Redator da época também são empregadas: “Penhorado agradece o vosso constante leitor e amigo”; “Desculpa a minha prolixidade”; “E´essa a inabalavel convicção do seu irmão e amº”; “Abraça o teu amigo e admirador”; “Até esse dia” “Do sincero collega d’

A Idéia”; “Preza aos cèos”.

Outra tradição discursiva identificada nas cartas abertas analisadas é o emprego da segunda pessoa do plural, especialmente nas cartas destinadas a autoridades. O emprego formal da segunda pessoa do plural, além de evidenciar o distanciamento entre os interlocutores, lembra o estilo pomposo empregado nas cartas oficiais. A nossa hipótese é que as tradições discursivas das cartas oficiais foram incorporadas às cartas destinadas a autoridades publicadas em jornais. O emprego da segunda pessoa funciona como uma forma de identificação do grupo de jornalistas. Kabatek (2004a) menciona que certas escolhas linguísticas evocam um discurso que tem por finalidade identificar indivíduos como pertencentes a um determinado grupo. O emprego de “vós” quando se

(19)

faz referência ao destinatário da carta aberta e a correta flexão dos verbos não deixam de ser uma demonstração de que o emissor domina a norma padrão, aspecto valorizado no contexto sócio-histórico no qual as cartas circularam.

Como podemos verificar pelos trechos selecionados a seguir, na maioria das cartas o emprego de segunda pessoa para referir-se ao destinatário é recorrente:

m) ||Aqui chegando testemunhareis o | que não devemos mais descrever -

| a fome e a nudez que synthetisam | a miseria do povo. (O Mossoroense, 23/03/1904)

n) ||Já tendes visto grande parte dos | terrenos indicados para a fallada | estrada de penetração, e não vos | deve ter escapado que muitas des- | sas indicações se acceitas fossem, | acarretariam incalculaveis prejuisos | ao erario publico, e consumiriam | tempo incalculável (O Mossoroense, 16/04/1904)

o) ||Na vossa viagem ao interior d’- | este Estado, perto do Assú vistes a | afamada lagôa do Piato, a maior e | mais útil que por aqui conhecemos,| mas que não terá agua, alem d’este | ano, porque, há tempos, agua não | recebe.

(O Mossoroense, 17/05/1904)

p) || E’ ocasião de chamarmos vo- | ssa preciosa attencão ao que | disse o Sr. Graf com as epigraphes | “PROSPECTO DA EMPREZA”,” CON- | DIÇÕES TOPOGRAPHICAS” E “CONSI- | DERAÇÕES GERAES”. (O Mossoroense, 24/05/1904)

q) || A tarefa de que vos achaes in- | cumbido com os vossos dignos com-

| panheiros, affigura-se nos assaz im- | portante e melindrosa. (O Mossoroense, 12/06/1904)

r) ||E’ com grande pezar que venho | até vós tomar parte e provar da | desabrida offensa que nos faz o | nosso collega d’O Correio de Macau | em sua edição de 8 deste mez, (...) (O Commercio de Mossoró, 24/04/1904)

s) || E quereis saber o extraordina- | rio numero de malefícios que nos | trouxe o Monopolio? Passo-vos | a expor alguns. (O Mossoroense, 08/08/1908)

t) || Em tua alludida corres- | pondencia fizestes uma cen- | sura aos homens de pres- | tigio de nossa terra pela | attenção que dispensão a | certos

(20)

typos que perambu- | lam pelas ruas d’esta Villa | ganhando boas amisades, | por meio de enredo e his- | torias mentirosas. (O Mossoroense, 10/10/1917)

u) || Com a presente, vamos insistentemente reiterar o | pedido que vos fizemos em telegrama de 10 do | corrente, impetrando ainda que em companhia da co- | lonia Mossoroense ahi residente, representada pelos | Snrs. Cel. Antonio Soares do Couto, Cel. Hermoge- | nes Fernandes, Dr.

Eufrazio Mario de Oliveira, Raul | da Silva caldas e Capitão Alipio Bandeira, envideis | todos os meios e esforços possíveis para a obtenção | de donativos (...) (O Mossoroense, 23/04/1919)

v) || Penhorado agradece o vosso | constante leitor e amigo. (O Mossoroense,14/06/1929)

Com relação ao emprego dos pronomes, a análise mostrou que o emprego da segunda pessoa só ocorre nas cartas abertas destinadas a autoridades, principalmente aquelas cujo propósito é reivindicar. Uma das nossas hipóteses é que o emprego da segunda pessoa segue a tradição das cartas oficiais, nas quais se exige um maior grau de formalidade e distanciamento entre os interlocutores.

Por outro lado, as cartas com o propósito de criticar, denunciar, defender-se de acusações, por exemplo, os pronomes são em terceira ou segunda pessoa do singular, uso que segue a tradição das cartas pessoais.

w) | E’ claro, porem, que ellas não podem | agir, desde que se não lhes offere- | çam qualquer queixa ou denuncia. | Infelizmente é vezo de algumas | pessoas da cidade de Mossoró | procurarem responsabilisar injus - | tamente as auctoridades de Areia | Branca, por actos que não lhes | compete (...) ( O Mossoroense, 14/07/1929)

Considerações finais

Esta pesquisa mostrou que no início do século XX diversos gêneros epistolares tinham presença efetiva nos dois jornais pesquisados. As notícias de outras cidades se davam por meio das cartas de notícias, remetidas ao redator. O editorial também tinha a forma de carta. Nesse contexto, a carta aberta era o gênero textual escolhido quando a finalidade era reivindicar, denunciar, criticar, defender-se de acusações, acusar etc.

(21)

Sobre o conteúdo temático das cartas abertas, ficou claro que os temas são diretamente relacionados à vida dos habitantes de Mossoró ou de comunidades próximas. Assim, foi possível conhecer como as pessoas se posicionavam frente aos problemas advindos das sucessivas secas que marcaram as duas primeiras décadas do século XX no sertão nordestino; que críticas e cobranças eram feitas às autoridades para viabilizar obras de combate os efeitos da seca; como o programa de açudagem era visto pela elite econômica e como essa elite tentava influenciar as ações do governo; como foi a luta para viabilizar a construção de ferrovias; quais eram as causas das intrigas na imprensa e das desavenças pessoais publicadas nos jornais; enfim, que aspectos da vida das pessoas eram temas dessas cartas.

A análise mostrou também que no início do século XX as cartas abertas eram uma tradição discursiva da mídia impressa de Mossoró, mas, aos poucos, foi desaparecendo. Nossa busca por exemplares de cartas abertas no jornal O Mossoroense, uma vez que o jornal Comércio de Mossoró circulou por pouco tempo, mostrou que, após as duas primeiras décadas, elas desapareceram, assim como também desaparecem as cartas de notícias. Uma hipótese é que esses dois gêneros epistolares tenham sido transmutados, nos termos bakhtinianos, por outros gêneros, respectivamente o artigo de opinião e a notícia.

Por fim, quando afirmamos que o gênero carta aberta desapareceu dos jornais mossoroenses, não estamos querendo dizer que ele não seja mais praticado, pois se fizermos uma busca na Internet vamos encontrar inúmeros exemplares de cartas abertas destinadas a autoridades, a políticos, a chefes de nações, a organizações não governamentais etc. Os propósitos visam, principalmente, a interesses coletivos e ao estabelecimento de um posicionamento político. Geralmente são assinadas por sindicatos, partidos políticos, ONGS, instituições sem fins lucrativos etc. As cartas abertas não desparecem, elas migraram para outro suporte.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Andrade, Maria Lúcia C. V. de Oliveira. 2008 a. Tradições discursivas em cartas de leitores na imprensa paulista: estudo dos papéis sociais e formas de tratamento numa perspectiva diacrônica. In: I SIMELP – I Simpósio Mundial de Estudos da Língua Portuguesa. São Paulo: FFLCH - Unicsul, vol.1.

__________. 2008b. Cartas do leitor: a interatividade na correspondência publicada em jornais. In: Revista da ANPOLL, vol. 01, nº 25, p.138-165.

(22)

Biasi-Rodrigues, Bernardete. 2010. A Trajetória do gênero anúncio em jornais cearenses dos séculos XIX e XX. In: Araújo Júlio Cesar de; Biasi-Rodrigues, Bernardete; DIEB, Messias (Orgs.) Seminários Linguísticos: discurso, análise linguística, ensino e pesquisa. Mossoró: Edições UERN, p. 17-33.

Bonini, Adair. 2003. Os gêneros do jornal: o que aponta a literatura da área de

comunicação no Brasil? Linguagem em Dis(curso). Tubarão-SC: v. 4, n. 1, jul./dez., p.

205-231.

Brandão, Helena H. Negamine e ANDRADE, Maria Lúcia V. C. O. 2009. Cartas da administração privada e cartas particulares: estudo da organização discursiva. In:

Castilho, Ataliba Teixeira de (Org.). História do Português Paulista. Série Estudos.

Campinas: UNICAMP/ Publicações IEL, p. 721-733.

Coseriu, Eugenio. 1980. Lições de Linguística Geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.

Kabatek Johannes. 2004a. Tradições discursivas e a mudança linguística. Texto apresentado no encontro PHPB em Itaparica-BA, set. p. 1-23. Disponível em:

<http://www.kabatek.de/discurso/itaparica.pdf. Acesso em 08/09/2015.

__________. 2004b. Sobre a historicidade de textos. Trad. José da Silva Simões. Linha d’Água, nº 17, abr., p. 157-170.

Costa, Alessandra Castilho da. 2008.Tradições discursivas em A Província de São Paulo (1875): gêneros textuais e sua constituição. In: Anais do Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa, São Paulo. Disponível em:

http://dlcv.fflch.usp.br/sites/dlcv.fflch.usp.br/files/03_1.pdf . Acesso em 08/09/2015 Koch, Peter. 1997. “Diskurstraditionen -zu ihrem sprachtheoretischer Status und ihrer Dynamik“. In: Barbara FRANK/Thomas HAYE/Doris TOPHINKE (Hg): Gattungen mittelaterlicher Schriftlichkeit. Tübingen, p. 43-79.

Longhin, Sanderléia Roberta. Tradições Discursivas: conceito, história e aquisição. São Paulo: Cortez, 2014.

Marcuschi, Luiz Antônio. 2002. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In:

Dionísio, Ângela Paiva; Machado, Anna Rachel e Bezerra, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna.

Silva, Adriano Wagner da; Medeiros, Gabriel L. Paula de. 2008. A integração do território do Rio Grande do Norte pelos açudes e estradas de ferro. Revista Fazendo História. Ano I. Edição I, p. 61-83 . Disponível em: http://www.cchla.u

frn.br/fazendohistoria. Acesso em: 11 de setembro de 2015.

Silva, Jane Quintiliano Guimarães. 2002. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de intertextualidade na escrita do texto. (Tese de doutorado). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.

(23)

Silva, Lucimar B. Dantas da. 2012. Carta-crônica: uma tradição discursiva no

jornalismo potiguar. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Ceará;

Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza.

Zavam, Aurea. 2009. Por uma abordagem diacrônica dos gêneros à luz da concepção de tradição discursiva: um estudo com editorais de jornal. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Ceará; Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza.

(24)

Riferimenti

Documenti correlati

Ainda Lambert Sauveur (op. cit.), afirma que a aprendizagem mnemónica é pouco duradoura e que a inteligência de cada aluno deve ser sempre envolvida no

Entendemos que sujeito é uma posição discursiva que o indivíduo ocupa para produzir seus textos, que existe uma complexa relação do sujeito com a linguagem e que é

Considerando que o perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes ao curso de Licenciatura em Língua Portuguesa em nosso cenário de pesquisa os revela como

O presente trabalho apresenta os resultados do estudo de caso comparativo cujo objetivo é analisar as conexões existentes entre os gêneros virtuais selecionados por docentes de

We develop a simple macroeconomic model of financial imperfections, in which the inter- play between relationship finance supplied by financiers who actively monitor

En una serie de contribuciones posteriores, aparecidas a la mitad de los años noventa, Andrea Zorzi ha intentado replantearlo, ligándolo al discurso historiográfico ya existente

In the present study, to gain further information into the mechanism of action of Kpkt, we have evaluated the effects of this toxin on the ultrastructure of the cell wall of a