ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1983
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
PARA ALÉM DA OUSADA AMBIGUIDADE JAMESIANA: O LIVRO A OUTRA DE ANA TERESA PEREIRA
Anabela Oliveira da Naia SARDO
7RESUMO
O ensaio sobre o conto A Outra, da escritora portuguesa nascida na Ilha da Madeira, Ana Teresa Pereira, pretende desvelar interferências entre literaturas de línguas diversas. No caso em estudo, trata-se de mostrar a influência decisiva e marcante que a literatura de língua inglesa (especificamente britânica e norte-americana) tem na obra desta escritora.
A análise do conto A Outra, publicado em 2010, procura fazer ressaltar a forma como o texto em causa, partindo da declarada paixão da escritora pelas narrativas de Henry James, consegue ir para além da ousada ambiguidade que carateriza a obra do escritor norte- americano do início do século XX.
Henry James bem como outros escritores, essencialmente anglófonos, marcaram de forma indelével a obra pereiriana, perpassando as narrativas de forma persistente e demarcando o seu universo circular, sempre em construção. As diegeses funcionam, pois, numa interdependência declarada, como se a sua obra fosse sempre a mesma.
Em A Outra não é só A Volta no Parafuso, de Henry James, que está em questão.
Implicitamente, outras obras do escritor foram fundamentais para que Ana Teresa Pereira se aventurasse neste exercício aliciante e ousado de homenagear Henry James, “virando do avesso” a história clássica e para sempre ambígua do autor de alguns dos romances, contos e textos de crítica literária mais marcantes da Literatura Inglesa.
PALAVRAS-CHAVE: Ana Teresa Pereira; A Outra; Henry James; desconstrução de fronteiras literárias.
Introdução
O presente ensaio tem como objetivo analisar o conto A Outra (2010) da escritora portuguesa, nascida na Ilha da Madeira, Ana Teresa Pereira, fazendo ressaltar a forma como o mesmo contribui para desconstruir fronteiras literárias. Partindo da declarada paixão da escritora pelas narrativas de Henry James, o conto ultrapassa os
7 IPG, UDI - Unidade de Investigação para o Desenvolvimento do Interior, Escola Superior de Turismo e Hotelaria, Unidade Técnico-científica de Línguas e Culturas, Rua Dr. José António Fernandes Camelo – Arrifana 627-588 Seia, Portugal, [email protected].
limites da Literatura Portuguesa, procurando ir para além da ousada ambiguidade que carateriza a obra do escritor norte-americano (naturalizado britânico) dos finais do século XIX, inícios do século XX.
Henry James, Iris Murdoch e Daphne Du Maurier foram alguns dos escritores que marcaram de forma mais indelével a obra de Ana Teresa Pereira. Outros, essencialmente anglófonos, perpassam de modo similar e constante as narrativas que compõem a obra que veio a lume desde 1989 até 2014, porque o seu universo, sempre em construção, é circular e as suas diegeses funcionam numa interdependência declarada.
Livros que “nascem” de livros
Ana Teresa Pereira assume abertamente o imenso amor e a admiração que sente pelos escritores que obsessivamente refere, a ponto de a obra dos mesmos modelar a sua sensibilidade e vida, bem como cada um dos seus livros. São eles que delineiam os seus textos, demarcam existencialmente as suas personagens, inspiram os seus cenários e, em última instância, impulsionam a autora portuguesa, num ato criador de extrema coragem, a escrever livros a partir de obras dos escritores que tanto a assombram.
É o que acontece, por exemplo, com O Verão Selvagem dos Teus Olhos, título sublime da obra escrita em 2008, que nasce a partir da história Rebecca de Daphne Du Maurier, uma “revisitação” de Ana Teresa Pereira à obra da escritora britânica e à personagem Rebecca, como “se a vida viesse depois da literatura e por ela fosse determinada” (Amaro, 2008: 8). O mesmo se passa com A Outra, obra publicada em 2010. Contudo, em A Outra, não é só A Volta no Parafuso, de Henry James, que está em questão. Implicitamente, outras obras do escritor foram fundamentais para que Ana Teresa Pereira se aventurasse neste exercício aliciante e ousado de homenagear Henry James, “virando do avesso” essa história clássica e amplamente debatida.
A Volta no Parafuso/The Turn of The Screw, livro escrito em 1898, teve ao
longo dos tempos diversas interpretações que levaram à existência de uma discussão
crítica inflamada, mas que veio a revelar-se insolúvel, sobre a realidade dos fantasmas
e/ou a sanidade de uma das personagens, a precetora de Bly. Brad Leithauser (2012)
afirma que a excecionalidade da narrativa de Henry James reside exatamente na ambiguidade renovada em cada (re)leitura, transformando a obra num livro que deslumbra o leitor pela hipótese da duplicidade de interpretações que dele se podem fazer. Um excerto do artigo “Ever Scarier: On ‘The Turn of the Screw’” condensa de forma admirável as razões que tornaram para sempre obscuro este livro do autor de alguns dos romances, contos e textos de crítica literária mais marcantes da Literatura Inglesa:
All such attempts to ‘solve’ the book, however admiringly tendered, unwittingly work toward its diminution. Yes, if we choose to accept the reality of the ghosts, ‘The Turn of the Screw’ presents a bracing account of rampant terror. (This is the way I first read it, in my teens.) And if we accept the governess’s madness, we have a fascinating view of a shattering mental dissolution. (That’s the way I next read it, under a professor’s instruction in college.) But ‘The Turn of the Screw’ is greater than either of these interpretations. Its profoundest pleasure lies in the beautifully fussed over way in which James refuses to come down on either side. In its twenty-four brief chapters, the book becomes a modest monument to the bold pursuit of ambiguity. It is rigorously committed to lack of commitment. At each rereading, you have to marvel anew at how adroitly and painstakingly James plays both sides. [sublinhado nosso] (Leithauser, 2012: s.p.)
Num artigo de 2006, intitulado “Henry James. The Turn of the Screw - Ghost story, or study in libidinal repression?”, Sumia S. Abdul Hafidh escreve também sobre a problemática da ambiguidade do texto jamesiano, asseverando que The Turn of the Screw patenteia um labirinto de interações complexas entre os vivos e os mortos (a vida e a morte) que originam o debate entre a dúvida de se tratar de uma mera história de fantasmas ou de um estudo sobre repressão sexual, uma vez que o enredo gira em torno do estado psicológico da personagem central que vê fantasmas, porém somente quando está sozinha ou absorvida em determinadas fantasias.
James escreveu The Turn of The Screw num tempo em que havia grande
interesse e enorme curiosidade em histórias de fantasmas. Todavia, de acordo com
alguns críticos, o escritor não se deixava seduzir por diegeses de fantasmas
estereotipadas, procurava antes escrever sobre visões reais, como parece confirmar o
prefácio que colocou na edição nova-iorquina da sua derradeira “história de fantasmas”,
denominada The Jolly Corner: “the strange and sinister embroidered on the very type of
the normal and easy” (James citado por Hafidh, 2006: s. p.).
Deste modo, para Hafidh, eram os desejos sexuais da precetora que provocavam as aparições de Quint, o empregado da propriedade, entretanto morto. Cada vez que ela imaginava ou desejava poder estar como o seu patrão, pensava avistar o espectro de Quint: “It was her own wish-fulfilment, her desires that appeared in the form of apparitions” (Hafidh, 2006: s. p.).
Para além desta controvérsia gerada em torno das questões de interpretação da obra jamesiana, outros críticos e teóricos da ficção preocuparam-se em analisar a técnica narrativa usada pelo autor em A Volta no Parafuso/The Turn of The Screw, concluindo que a introdução, o enquadramento e a narrativa em primeira pessoa conseguem convencer ou até mesmo manipular os leitores, o que impele à inevitável hesitação nas interpretações.
8Linda Kauffman escreve, no livro Discourses of Desire: Gender, Genre, and Epistolary Fictions (1988), que a imagética da obra de James é uma reminiscência do género gótico, bastando atentar nas descrições de Bly e da propriedade circundante.
Chama também a atenção para o facto da precetora de Bly se referir claramente ao livro Os Mistérios de Udolpho e, de forma indireta, à obra Jane Eyre, evocando-se uma analogia entre a personagem de James e a protagonista Jane Eyre e também Bertha, a mulher demente confinada em Thornfield.
À semelhança do livro Rebecca de Daphne Du Maurier, que deu origem à obra O Verão Selvagem dos Teus Olhos de Ana Teresa Pereira, também The Turn of The Scew teve adaptações cinematográficas, como, por exemplo, em 1956, numa realização de John Frankenheimer. Neste caso, o papel da precetora é desempenhado pela belíssima atriz Ingrid Bergman
9, diversas vezes mencionada nas narrativas pereirianas, surgindo até na capa do livro Até que a Morte nos Separe (2000), numa foto com Cary Grant, na cena inesquecível do filme Notorious/Difamação de Hitchcock. Em 1961, há uma nova e extraordinária adaptação, num filme a preto e branco realizado por Jack Clayton, tendo Deborah Kerr no papel de precetora. Intitula-se The Innocents e é considerada, ainda hoje, como uma das melhores adaptações cinematográficas do livro de James
10. O escritor, realizador e produtor de cinema Guillermo del Toro, num artigo
8 Como refere Todorov, na obra Introdução à Literatura Fantástica, a hesitação acontece em narrativas que se caracterizam não pela simples presença de acontecimentos sobrenaturais, mas pela maneira como os percebem o leitor e as personagens.
9 Pode aceder-se a esta informação no sítio Web IMDb. Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0053384/, consulta a 02/12/ 2012.
10 Esta é uma adaptação cinematográfica que marca decisivamente a obra de Ana Teresa Pereira.
escrito para o jornal USA Today (2011), escolheu este filme como um dos seus filmes de terror favoritos.
11Estas referências às adaptações das obras literárias à Sétima Arte procuram reforçar a importância que o Cinema tem na obra de Ana Teresa Pereira e consequentemente ajudar a perceber a génese de livros como O Verão Selvagem dos Teus Olhos e A Outra. Muitas vezes, a interpretação que a escritora faz das obras, que obsessivamente menciona, ou a sua compreensão muito própria das mesmas, são combinações da leitura dos livros e do visionamento das adaptações cinematográficas dos mesmos (bem como de outros filmes), o que lhe permite atribuir sentidos novos e diversos às diegeses.
Para além da ousada ambiguidade jamesiana: o livro A Outra de Ana Teresa Pereira
No texto escrito para o jornal Público, difundido a 31 de janeiro de 2004 e designado “A noite dá-me um nome” (Pereira, 2004: 7), precisamente uma recensão de A Volta no Parafuso,
12Ana Teresa Pereira refere-se ao conto de Henry James O Desenho no Tapete, fundamental na obra da escritora portuguesa:
No conto ‘O Desenho no Tapete’ (...), Henry James fala do ‘segredo’ que o autor vai tecendo no próprio corpo do texto, o fio no qual estão enfiadas as pérolas, enfim, a verdadeira história que, se o romance ou conto tiver vida, está em todas as partes, e é contada por cada palavra, por cada sinal de pontuação. Claro que se existe um inconsciente do texto, e eu não tenho dúvidas de que existe, o autor pode ser o último a saber ou até nunca saber.
Em ‘A Volta no Parafuso’, James deixou falar livremente o seu desejo e o seu medo. Mas é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar na novela. (Pereira, 2004: 7)
Henry James expõe luminosamente, em A Arte da Ficção, aquele que é o seu conceito de “boa ficção”, ou seja, o tipo de ficção realista do século XIX, conforme se subentende pelas afirmações feitas, como a que se cita: “A única razão para a existência de um romance é que ele tenta de facto representar a vida” (James, 1995: 62).
11 A expressão utilizada pelo realizador é ‘fright flicks’. Podemos ter acesso a este comentário em http://www.imdb.com/title/ tt0055018/trivia, consulta a 01/12/2012.
12 Edição de 2003 de Relógio D’Água Editores.
No conto O Desenho do Tapete, no qual James utiliza a ficção para teorizar sobre a mesma, todo o enredo gira em torno dos desapontamentos das personagens por não conseguirem penetrar no sentido último da obra do escritor ficcional Verek, uma vez que encaravam esse(s) sentido(s) como o complexo desenho de um tapete persa, que está em primeiro plano para Verek, mas é de árdua observação. A visualização deve ser tentada. Contudo, dificilmente ou mesmo nunca será vislumbrada. Isto equivaleria a dizer que o sentido da obra de arte é a própria obra de arte em si, envolta numa aura de mistério e insondabilidade que exige constante contemplação dos seus admiradores (leitores ou observadores), sem que lhes seja obsequiado o acesso ao entendimento completo dos seus significados. Terá sido este objetivo que James magistralmente atingiu ao escrever The Turn of The Screw.
A ambiguidade jamesiana (ou seja, aquela a que Ana Teresa Pereira se refere, a que os próprios textos de Henry James teorizam e as suas obras ficcionais refletem) parece-nos ser o motivo que seduz a escritora portuguesa que procura transpor, para as suas narrativas, essa mesma doutrina. Ademais, porque a ficção de James é inegavelmente ambígua, esta questão tem sido amplamente discutida por diversos críticos, como já afirmámos, o que teve implicações para o fenómeno da ambiguidade literária, como um todo, como conclui Rachel Salmon no artigo “A Marriage of Opposites: Henry James’s ‘The Figure in the Carpet’ and the Problem of Ambiguity”
(1980).
Rachel Salmon refere-se aos trabalhos de Shlomith Rimmon e Christine Brooke- Rose como sendo as tentativas teóricas mais bem conseguidas para descrever a ambiguidade existente na obra de Henry James. Reexplorando o mais famoso exemplo de ambiguidade controversa, Brooke-Rose mostra que todas as palavras e incidentes da história podem ser interpretados das duas maneiras. Para Salmon,
each piece of textual evidence perfectly supports each of the mutually contradictory readings: there are ghosts and there are not (the hallucination theory). Since, according to Brooke-Rose, no synthesis or resolution of these readings is possible, she seeks unity at a deeper level - what she calls a single
‘narrative sentence’ capable of generating consistently binary readings on the story level. (Salmon, 1980: 788)
Shlomith Rimmon, por seu lado, estava mais interessada na experiência do leitor
sobre a própria história, colocando-se à parte das interpretações contraditórias. A
definição de ambiguidade de Rimmon usa a terminologia da lógica:
‘the ‘conjunction’ of exclusive disjuncts (a b)’ or, in ordinary language: ‘the coexistence of incompatibles… the meanings are mutually exclusive, thus calling for disjunction and choice, but because the context provides no decisive grounds on which to base our choice, the meanings remain conjoined’. (Shlomith Rimmon, citada por Salmon, 1980: 789)
Acreditamos, pois, que foi esta ‘controversa ambiguidade’ que levou a escritora portuguesa a compor o livro A Outra. Por ‘controversa ambiguidade’, entende-se tanto o aspeto da dupla interpretação das palavras e dos factos, como a experiência do leitor sobre a própria história. A mesma ‘controversa ambiguidade’ que subjaz à obra de James e que o escritor procura teorizar em The Figure in The Carpet.
Como afirma José Mário Silva, foi:
da projeção da escritora madeirense numa história alheia que nasceu o seu livro (…): ‘A Outra’, um conto perfeito, daqueles que apetece ler em voz alta, várias vezes - pecando apenas por ser demasiado breve e por apresentar uma estrutura narrativa tão elíptica, tão reduzida ao mínimo dos mínimos, que se torna opaca para quem não conheça a novela de James. (Silva, 2011:
s.p.)
Em nossa opinião, é nessa narrativa omissa que reside igualmente a beleza do texto pereiriano, porque, tal como em O Verão Selvagem dos Teus Olhos, Ana Teresa Pereira não se limita a recontar a(s) história(s)/estória(s). A escritora “vira-as do avesso”, narrando-as através de uma outra perspetiva. À semelhança do que acontece em O Verão Selvagem dos Teus Olhos, oferece-se o ponto de vista do fantasma ao leitor de A Outra. Por outro lado, Ana Teresa Pereira “invade” o território jamesiano com a sua própria linguagem, como metaforicamente regista José Mário Silva (2011: s.p.): “ali onde um se demora, construindo lentamente a tempestade, a outra espalha relâmpagos, fragmentos curtos, súbitos clarões”.
Em A Outra, deparamo-nos com as mesmas obsessões, semelhanças, circularidades, reminiscências e imagens que assomam vindas de obras anteriores de Ana Teresa Pereira: o castelo, as flores, o vento e as charnecas: “a charneca num dia de vento” (Pereira, 2010: 11); o lago e o nevoeiro: “Avistei o lago ao longe e tive a impressão de que uma leve neblina nascia das águas” (Pereira, 2010: 22). E, inevitavelmente, o amor pelos livros, muito especialmente pela literatura inglesa e americana dos finais do século XIX, inícios do XX.
As paixões pereirianas ressurgem logo na capa que é de Carlos César
Vasconcelos sobre o quadro Windflowers (1903) do pintor inglês John William
Waterhouse (1841-1917), um artista romântico, relacionado com os pintores pré- rafaelitas pela sua devoção em retratar mulheres bonitas e pelo fascínio pela mulher fatal. Waterhouse pinta essas mulheres, recorrendo ao simbolismo, a esquemas de cores vivas e a uma extraordinária luminosidade. Esquissava as suas obras, baseando-se em histórias famosas, poemas ou mitos, escolhendo alguns verdadeiramente trágicos ou mesmo brutais. Todavia, conseguia transmitir nos seus quadros beleza e calma. Tal como a Irmandade dos Pré-Rafaelitas, profundamente apreciada por Ana Teresa Pereira, Waterhouse usou o simbolismo para estabelecer temas-chave, agregando narrativas às suas pinturas.
Naturalmente que a escolha deste quadro não terá sido casual, antes carregada de significado uma vez que, nas pinturas de Waterhouse, é reconhecível um tipo idealizado de mulher como se pode ler num artigo de Cathy Baker. Usando as palavras de Peter Trippi, Baker escreve que, na obra deste pintor, a mulher tem um tipo idealizado, reconhecível instantaneamente:
‘... Waterhouse transcended the particularities of individual models to present his own idealized, instantly recognizable type... Older contemporaries, such as Rossetti, Poynter and Moore, had devised their own types.’ (…) He also described the ‘Waterhouse girl’ - or Waterhouse’s ‘ideal type’ - as ‘an invented beauty.’ Peter goes on to say, ‘... it seems to me Waterhouse’s ideal type was very much about what we call an English rose style.’” (Peter Trippi, J.W. Waterhouse, 2002, citado por Cathy Baker, 2012: 1).
Deste modo, podemos concluir que a existência de um determinado tipo de mulher, identificável na obra pereiriana, bem como o apreço da escritora pela Literatura e Pintura pré-rafaelitas justificam esta escolha.
Se atentarmos no título, verificamos que o mesmo é carregado de significado e indiciador da história narrada, sobretudo no que à questão da ambiguidade e da perspetiva narrativa diz respeito. A Outra traz-nos à memória o filme de 2001 amplamente premiado, Os Outros/The Others, realizado por Alejandro Amenábar (n.
1972) e protagonizado pela sublime e etérea Nicole Kidman. É pertinente chamar ao texto um excerto de um artigo de William Skidelsky sobre The Turn of The Screw, no qual o jornalista se refere ao texto de James e ao filme de Amenábar: “James’s tale, which he described as ‘a piece of ingenuity pure and simple, of cold artistic calculation’, has inspired many successors, among them (…) the 2001 film The Others “ (2010: s.p.).
A narrativa de A Outra é precedida por uma epígrafe de The Turn of the Srew
(1996: 48): “‘Why the candle’s out!’ I then cried./‘It was I who blew it, dear!’ said
Miles” (Pereira, 2010: 7), apenas inteligível e reveladora para o leitor que conheça a obra de Henry James, colocando no cerne da história a precetora e o menino Miles. A escolha do excerto da obra de James é ardilosa, porquanto aumenta a ambiguidade do conto pereiriano.
A Outra é uma obra elíptica, composta por seis partes sem título, constituídas por séries de textos breves, alguns formados apenas por uma frase. A narração é feita na primeira pessoa, coincidindo com a protagonista da diegese, a precetora que conta a sua história, enfatizando essencialmente a sua estada em Bly, a propriedade para onde vai trabalhar, incumbida da educação de duas crianças órfãs. Nesta narrativa, ainda mais do que em O Verão Selvagem dos Teus Olhos, Ana Teresa Pereira surpreende-nos com uma história que tem por base um outro livro, mas que é efetivamente outra.
O primeiro capítulo, totalmente dedicado à vida da protagonista antes da partida para Bly, começa na primeira página apenas com duas frases curtas, de uma beleza e ambiguidade extraordinárias. Só mais tarde perceberemos serem as mesmas que iniciam todas as outras partes: “A porta abriu-se sem que ninguém lhe tivesse tocado./O vento trouxe as folhas para dentro de casa, num movimento suave, com algo de musical”
(Pereira, 2010: 9).
A personagem principal e narradora enfatiza Bly, lugar onde descobriu a sua beleza como mulher, porque em Bly havia um espelho grande: “Eu penso que tudo começou no dia em que me vi, de corpo inteiro, no espelho do meu quarto em Bly”
(2010: 10). Teve, então, consciência de que era “muito bonita” (Id. Ibidem) e percebeu
“o que ele queria dizer ao falar das mulheres pintadas por Dante Gabriel Rossetti” (Id.
Ibidem, destaque nosso). Atente-se em dois aspetos relevantes na narrativa: a percetora tem uma beleza artística e isso tinha-lhe sido dito por alguém, “ele”, personagem que o leitor, nesse momento da história, ainda desconhece.
No texto seguinte, a protagonista/narradora recorda a história da sua infância e
adolescência, momentos da vida onde tudo é comparado a situações e personagens
literárias. A primeira referência surge quando se traz, para o texto, aquele que é
considerado um dos grandes poetas românticos ingleses, William Wordsworth (1770-
1850), que fazia parte dos chamados “Lake Poets”. A precetora compara as brincadeiras
de infância com as suas irmãs com as de uma menina num poema de Wordsworth “que
se sentava a fiar junto aos irmãos mortos no cemitério” (Pereira, 2010: 11). Insinua-se o
estado da protagonista, conclusão a que só mais tarde o leitor conseguirá chegar.
Nota-se também a importância dos romances da juventude, nos quais a precetora
“descobria os mundos mais estranhos” (Pereira, 2010: 12). Reemergem, numa obsessão e paixão absolutas, as irmãs Brontë e as suas obras: Emily e a obra Wuthering Heights/O Monte dos Vendavais; Anne, através do romance The Tenant of Wildfell Hall/O jogo da vida (1848) e Charlotte com a menção a Jane Eyre. Similarmente, alude-se à romancista e contista da Época Vitoriana, Elizabeth Cleghorn Gaskell (1810- 1865), e a Charles Dickens (1812-1870), o qual publicou os trabalhos de Gaskell na revista Household Words, nomeadamente as suas histórias de fantasmas:
O mundo terrível de Dickens (…), a paixão de Heathcliff por Cathy (Heathcliff que me tirava o sono), a solitária inquilina de Wildfell Hall, e Jane Eyre…
Havia uma história de Elizabeth Gaskell de que gostava muito, e que também entrava pelos meus sonhos (…). E a companhia dos fantasmas. (Id. Ibidem)
O texto vai fornecendo indícios para que acreditemos que A Outra é igualmente uma história de fantasmas, como as de Gaskell, ou de mortos convivendo com os vivos, como acontece nos poemas de William Wordsworth; ou, ainda, em narrativas onde os fantasmas são os que julgam estar vivos, como no filme Os Outros.
13Nas páginas 13 e 14, a narradora reforça a sua preferência pelo romance Jane Eyre. Este excerto é indiciador da interpretação pereiriana do livro de James no sentido dado por alguns críticos literários e, no fundo, pelo próprio Henry James, quando declara que a razão para a existência de um romance é que ele tenta representar a vida.
A precetora sonhava com um destino semelhante ao da heroína de Charlotte Brontë: “E se Jane, que não tinha grande encanto, conseguira o amor de Mr. Rochester, eu podia sonhar com algo parecido (…). E quando respondi ao anúncio do jornal (…) tive a sensação vertiginosa de que chegara o meu momento” (Pereira, 2010: 13).
O texto seguinte, curtíssimo, é sobre a ida da precetora a Londres, onde se desloca para a entrevista de trabalho. A narrativa continua a prover sinais sobre a personalidade da mulher, sobre as suas fantasias, para além da caraterística comum às demais personagens pereirianas no que diz respeito ao efeito da Literatura sobre a própria vida: “Nem nos meus sonhos mais ousados imaginara um tal Mr. Rochester”
(Pereira, 2010: 15).
Na página 16, num trecho conciso, como os demais, é apresentado o encontro com o “patrão” de Bly e apontadas as razões da contratação da precetora: as crianças e a
13 Recorde-se a cena em que os criados (mortos) dizem a Grace (também ela fantasma tal como os filhos) que os vivos têm de aprender a conviver com os mortos.
necessidade de alguém para cuidar da sua educação e “resolver todos os problemas que [pudessem] surgir” (Pereira, 2010). Imediatamente, no espírito da protagonista, começam a formar-se entendimentos que vão para além daqueles que a situação real deixa revelar. O dono de Bly quer apenas “alguém que se dedique às crianças de corpo e alma” (Pereira, 2010: 16), de modo a que nunca seja “importunado” (Id. Ibidem). A precetora sente, todavia, que eram como se fossem “velhos amigos” (Id. Ibidem) e que estavam só “a concluir um pacto” (Id. Ibidem).
Ainda que alguns destes aspetos se assemelhem àqueles que podemos ler na narrativa de James, Ana Teresa Pereira adiciona, ao seu texto, outros que aí não estão presentes e uma componente que nunca falta nas suas histórias: os conhecimentos sobre Literatura e Pintura e as referências literárias e pictóricas, como comprovam as citações anteriormente trazidas para a presente análise e como podemos verificar, por exemplo, no seguinte excerto: “Com a sua cor de cabelo não devia usar cinzento. (…) Conhece os quadros de Dante Gabriel Rossetti? (…) Uma mulher com a sua cor de cabelo deve usar verde, talvez vermelho Ticiano” (Pereira, 2010: 17).
A partida para Bly ocupa uma página e resume-se a uma frase: “Na manhã seguinte parti para Bly” (Pereira, 2010: 19), revelando a importância deste espaço extraordinário e fantástico na narrativa em estudo e confirmando, igualmente, a influência do mesmo em toda a obra de Ana Teresa Pereira.
A parte 2 de A Outra principia como a parte 1, acrescentando-se apenas a estação do ano, outono, uma das estações prediletas das personagens pereirianas:
A porta abriu-se sem que ninguém lhe tivesse tocado.
O vento trouxe as folhas para dentro de casa, num movimento suave, com algo de musical. (…)
Devia ser Outono. (Pereira, 2010: 21)
Reiteradamente se instala a ambiguidade e a perplexidade no leitor, quando, no texto subsequente, se verifica que esse início e essa estação do ano não coincidem com a chegada da precetora à propriedade: “Cheguei a Bly num fim de tarde de Abril”
(Pereira, 2010: 22). Esse momento é representativo da obsessão das personagens em relação aos seus sonhos, normalmente modelados pela Arte: “Quando a carruagem se aproximou da casa, lembrei-me do meu velho sonho. (…) Estava a chegar a um castelo.
(…) chegava a um lugar onde tudo ia acontecer. Porque na minha vida ainda não tinha
acontecido nada” (Id. Ibidem).
A protagonista e narradora descreve Bly “como uma daquelas casas que associamos a Inglaterra, bela e gelada” (Pereira, 2010: 23), onde a governanta, “uma mulher alta vestida de cinzento”, a esperava no “pórtico (…)” (Id. Ibidem). A precetora continua a comparar-se às “heroínas dos romances que lera nos últimos anos” (Id.
Ibidem). Como nas peças de teatro, a mulher, cujo nome ainda se desconhece neste momento da diegese (aliás, nunca será mencionado ao longo da narrativa), sentia que não nascera para um papel secundário, como considerava acontecer com a governanta.
Ao entrar em Bly, a jovem conhece Flora que a seduz pelo seu encanto. Tudo se passa como se estivesse dentro de um sonho ou de uma peça de teatro: “Naquele momento, como se começasse a cena seguinte de uma peça, ouvi as notas de um piano no andar de cima” (Pereira, 2010: 24).
A precetora revela outros saberes comuns às personagens pereirianas, como é o caso de conhecimentos sobre botânica: “Tinha de ensinar-lhe que não se deve apanhar campainhas azuis, que elas não vivem o bastante” (Id. Ibidem). Na página seguinte, aparece, pela primeira vez, o nome da governanta, Mrs. Grose. Ficamos também a conhecer Miles, que “Parecia um pequeno príncipe” (Pereira, 2010: 25) e provoca um fascínio imenso na recém-chegada a ponto de a levar a confessar que não conseguia
“resistir a ninguém da família” (Id. Ibidem). Fica de tal forma encantada que para ela se torna claro “que queria dedicar a [sua] vida àquelas duas crianças sozinhas (…). E mostraria ao homem de Londres que era a pessoa indicada para o papel” (Id. Ibidem).
A circularidade, caraterística das narrativas pereirianas, regressara já com a repetição das frases preludiais das duas primeiras partes e novamente, na página 27, se repetem frases que já estavam escritas na página 10 e que revelam o narcisismo da personagem, já indiciado em afirmações anteriores:
Na casa dos meus pais não havia espelhos. Na casa da minha professora de piano, havia só um, pequeno e não muito nítido. Eu passava muito tempo a olhar para o meu rosto. (…) Não muito alta, esbelta, com o cabelo cor de cobre que, desde pequena, me diziam ser impróprio para a filha de um modesto pároco” (Pereira, 2010: 27).
O excerto da página 28 fala-nos do dia em que “explorou” Bly com Miles e
Flora e “aquele era mesmo um castelo de contos de fadas” (Pereira, 2010). Repare-se
que, tão ao gosto de Ana Teresa Pereira, “Havia, até, um quarto fechado” (Id. Ibidem),
um jardim e um lago. Miles revela-se também uma personagem com caraterísticas
pereirianas: demonstrava conhecimentos vastos e “lera peças de Shakespeare e sabia de
cor versos de Nilton. Conhecia as constelações. Sabia o nome dos mares. (…) tocava muito bem piano” (Id. Ibidem). Flora, tal como a narradora, gostava de dançar.
Num texto brevíssimo, que ocupa a página 30, a narradora e protagonista conta a primeira visita ao “espaço assombrado” (Pereira, 2010) do lago, como se fosse uma aventura a três, que lhe lembrava os livros de Stevenson que ela e Miles conheciam bem.
A terceira parte começa exatamente do mesmo modo que a segunda, fragmento no qual as duas primeiras frases eram as que compunham o texto da primeira parte. Tal como a segunda acrescenta à primeira parte duas novas frases, a terceira introduz três novas proposições ambíguas e misteriosas. A ambivalência advém de diversos aspetos dos quais se destacam a referência à rapariga de vestido castanho e a utilização dos pronomes “ele/eles”:
A rapariga de vestido castanho estava imóvel num canto. Olhava para a porta com uma expressão assustada.
Era ainda mais jovem do que eu e muito bonita. Ele gosta de nós jovens e bonitas.
Eles gostam de nós jovens e bonitas. [destaque nosso] (Pereira, 2010: 33)
O texto não permite ao leitor compreender quem é a rapariga que surge como se se tratasse de uma aparição. Contudo, uma análise cuidada e a comparação com o livro de James e com o filme The Others permitem-nos perceber e reafirmar a mestria de Ana Teresa Pereira. A escritora não se limita a escrever uma nova história a partir da narrativa de James, vira-a mesmo do avesso e, para tal, usa novamente a questão da perspetiva para o fazer. A narradora do texto pereiriano é a precetora morta, aquela de quem nunca se ‘ouve’ o nome, aquela que, em The Turn of The Screw, se chamava Miss Jessel. A Outra mostra, portanto, como escreve José Mário Silva, “o ponto de vista de Miss Jessel, o fantasma” (2011: s.p.).
Ana Teresa Pereira revela o outro lado da história, sugerida pela governanta em
The Turn of The Screw, e entendida de forma distorcida pela precetora substituta. Em
The Turn of The Screw, Mrs. Grose conta à jovem precetora que a sua predecessora,
Miss Jessel, e um outro empregado, Peter Quint, tinham tido uma intensa relação
amorosa e que ambos haviam morrido. Alguns críticos sugerem que Quint teria
molestado sexualmente Miles, bem como outros membros da casa. Deste modo, a
ambiguidade interpretativa nasce sem nunca se dissipar, como já referimos.
Em A Outra, temos a versão da precetora, Miss Jessel (nunca nomeada), que narra a sua vida em Bly e confessa os seus pensamentos mais íntimos: a fascinação pelo patrão e o seu tórrido envolvimento com Quint. É ela que vai desempenhar o papel fundamental tal como a própria predetermina, o papel principal, semelhante ao das heroínas dos romances. Todavia, e embora toda a sua beleza (cabelos, olhos, boca) faça lembrar as mulheres etéreas pintadas por Dante Gabriel Rossetti, ela tem igualmente uma forte componente sensual, simbolizada pelos voluptuosos vestidos que havia encomendado e pelo intenso envolvimento com Quint.
Peter Quint surge, na narrativa pereiriana, como um homem omnipresente que emerge como uma versão distorcida do patrão. Nem as roupas, nem a pose de que se apropria conseguem disfarçar a sua rudeza e o seu ar agreste: “uma versão áspera e brutal do amo” (Pereira, 2010: 38). A relação de Quint com a precetora revela-se como uma substituição dos mais profundos desejos da deslumbrada mulher, uma vez que todo o seu interesse se dirigia ao senhor de Bly: “Gosto destes passeios solitários. Um dos motivos é que o passeio termina com o regresso a Bly. O outro é que me permite sonhar com uma casa em Londres, com uma biblioteca, com um homem sentado perto da lareira” (Pereira, 2010: 34).
As páginas 33, 34 e 35 são fundamentais em A Outra, carregadas de uma ambivalência sublime, induzida pelo confronto entre as duas precetoras (na página 33) e pela descrição do avistamento de Quint na torre. Poderíamos interrogar-nos sobre quem avista. Trata-se da primeira vez que a precetora vê Quint ou das visões que tinha/julgava ter a jovem que foi substituir Miss Jessel? São oferecidos ao leitor atento alguns sinais indiciadores da identidade da narradora da história. Trata-se de Miss Jessel morta, uma vez que ela afirma sentir uma “sensação difícil de definir. (…) talvez a minha percepção se tivesse apurado. (…) era como se nunca tivesse estado tão sozinha na minha vida”
(Pereira, 2010: 35).
Do mesmo modo que em O Verão Selvagem dos Teus Olhos, a substituta é colocada em segundo plano. A precetora, que substitui Miss Jessel, aparece num plano secundário. Ela é, mesmo, a substituta e todo o protagonismo é dado à amante de Quint.
As páginas 36 e 37 narram, numa pincelada, a noite em que Miss Jessel e Quint se conhecem. Neste excerto, ficamos com a certeza de que a narradora de A Outra é Miss Jessel, a precetora morta de The Turn of The Screw.
As expressões “And yet… and yet…” (Pereira, 2010: 36) reaparecem em A
Outra. As mesmas haviam sido usadas em O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Pereira,
2008: 47). Estes versos são excertos do poema, cujo tema é a morte, da autoria do poeta japonês Kobayashi Issa, reforçando, no livro de 2008, a situação de Rebecca no seu regresso a Manderly. Em A Outra servem, de igual modo, para indiciar a situação da precetora e de Quint, duas personagens que já não pertencem ao mundo dos vivos.
A precetora repara que ambos estavam “vestidos como atores” (Pereira, 2010:
36). Interroga-se, então, sobre a peça diabólica que se preparavam para representar. Esta pode ser uma das interpretações de The Turn of The Screw. Contudo, não é este o sentido que nos é oferecido em A Outra, uma vez que a resposta aparece na página 49 e nada tem de malévolo: “Muitas vezes imaginei que Miles e Flora eram os nossos filhos.
E Deus sabe como aquelas crianças precisavam de pais. (…) E Miles e Flora caminhavam num mundo criado por nós. E sentiam-se protegidos e felizes (Pereira, 2010: 49). Já na página 37 se podia ler: “Não demorei a perceber que Miles adorava Quint. (…) E Quint parece gostar dele” (Pereira, 2010).
A circularidade ressurge de novo com a repetição de uma frase inquietante e indiciadora: “é como se tivéssemos desenvolvido um hábito inquietante de espreitar pelas janelas” (Pereira, 2010: 38 e 39), revelando o ‘estado’ da precetora e de Quint.
Recorde-se que, em The Turn of The Screw, os presumidos fantasmas eram vistos, através das janelas, como se estivessem espreitando de pontos diversos: do cimo da torre, do outro lado da janela, na ilha de juncos no lago.
No final da parte 3, o texto justifica o envolvimento de Miss Jessel e Quint, incompreendido e reprovado pela sociedade e a muito custo aceite pela própria narradora: “Eu era uma senhora. (…) não havia nada de comum entre mim e aquele homem rude” (Pereira, 2010: 49). Como em outras narrativas de Ana Teresa Pereira, os relacionamentos têm algo de profundamente físico, assomando como uma atração fatal à qual é penoso ou quase impossível escapar: “E acho que quase senti um alívio quando ouvi a leve pancada na porta. (…) Eu sabia quem era. / O meu corpo sabia quem era”
(Pereira, 2010: 41).
Na parte 4, repete-se o mesmo texto do início das anteriores, acrescentando-se mais um parágrafo que se refere à jovem precetora de cabelo castanho: “Ela tinha um ar que eu conhecia. O que eu tinha há algum tempo. Como se ninguém lhe tivesse tocado”
(Pereira, 2010: 43). A dúvida coloca-se sobre quem vê quem e sobre qual das duas é a intrusa em Bly.
O relacionamento de Quint e Jessel continua a ser sumária, mas intensamente
descrito, fazendo sobressair a diferença entre os dois amantes: “E o meu corpo torna-se
mais leve nos seus braços pesados” (Pereira, 2010: 45). A bela e sensual precetora reforça a ideia de continuar a pensar no senhor de Bly, mas afirma ter aprendido “a importância dos substitutos” (Pereira, 2010: 47). Para reforçar o lado libidinoso da precetora de cabelo ruivo, na qual podemos reconhecer algumas personagens pereirianas, há a referência a dois livros, um dos quais diversas vezes mencionado ao longo da vasta obra da escritora portuguesa, o outro referido pela primeira vez em A Outra: “chamava-se Fanny Hill e a história era mais estranha do que a das Mil e Uma Noites. Mas foi assim que o li, como um conto das Mil e Uma Noites” (Pereira, 2010:
46).
Fanny Hill (Memoirs of a Woman of Pleasure) é o nome pelo qual é conhecido o romance erótico do escritor inglês John Cleland (1709- 789), publicado em 1748. É referenciado como “the first original English prose pornography, and the first pornography to use the form of the novel” (Foxon, 1965: 45) e é considerado como um dos livros mais perseguidos e banidos da História da Literatura. A sua menção reforça um conceito presente na obra pereiriana, a ideia de que o sexo pode existir apenas para dar prazer e não por amor. Embora em A Outra, Miss Jessel afirme ter-se apaixonado por Quint com o corpo e com a alma, como se pode ler na página 54, ela sente a ligação com esse homem como uma “Degradação. Era assim que as pessoas à nossa volta viam a nossa relação. A preceptora degrada-se com o criado” (Pereira, 2010: 55), exatamente pelo facto de nela se sobrepor essa componente fortemente carnal e pelo facto de Quint não passar de “um substituto”.
O início da penúltima parte acrescenta nova informação acerca da mulher de quem jamais se conhece o nome: “Ela não tinha nome. Pelas conversas que ouvi, era a única filha de um pároco de aldeia e este era o seu primeiro emprego” (Pereira, 2010:
51). É-nos também revelada a morte de Quint, “Um homem que bebera demasiado na
aldeia e ao voltar para casa escorregara no gelo” (Pereira, 2010: 46), e insinuada a ideia
de que está morto assim como a precetora sua amante. O texto deixa supor que Miss
Jessel se teria suicidado: “(…) Mas nada se movia à minha volta. (…) E então vi-o no
meio do nevoeiro. (…) Dei uns passos entre os juncos e senti vagamente que o meu pé
entrava na água” (Pereira, 2010: 59). Afirma-se no texto que a precetora e Quint
pertencem ao grupo daquelas pessoas que “não encontram o caminho para o Céu ou o
Inferno. (…) alguns ficam para trás. Os que não acordaram antes de morrer” (Pereira,
2010b: 52). Notemos, de novo, a circularidade e a repetição. Ana Teresa Pereira tem um
livro intitulado Se Eu Morrer Antes de Acordar (2000).
A primeira página da última parte do texto coincide com o momento em que, por fim, as duas mulheres se reconhecem e se enfrentam, desvelando o “segredo” mais profundo do texto: “Pela primeira vez, ela dirigiu-me a palavra. / A casa é minha. Eles são meus” (Pereira, 2010: 61). Entre ambas, há semelhanças físicas e de gostos literários: “Entre os livros que ela colocou na estante, há um exemplar de Jane Eyre”
(Pereira, 2010: 62).
Os últimos seis breves textos de A Outra revelam a intenção de Ana Teresa Pereira, confirmada pela mesma na crónica que escreveu, no jornal Público, em 2004, intitulada “A noite dá-me um nome”, quando assevera que os fantasmas de Bly são os nossos e, tal como em relação à história original de James, “é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar.”
Neste final, existem inúmeras semelhanças com o filme Os Outros: “É um mundo [o dos mortos] estranho o nosso. O mundo que os outros pressentem quando se perdem num bosque ou quando o vento que entra pela janela apaga a única vela acesa no quarto” (Pereira, 2010: 63). Recordemos, a propósito destas frases, a inscrição inicial do livro e o significado da mesma no contexto desta narrativa pereiriana: “‘Why the candle’s out!’ I then cried./‘It was I who blew it, dear!’ said Miles” (Pereira, 2010: 7).
É no momento do confronto entre as duas precetoras, na página 67, que finalmente se consegue alcançar o intuito pereiriano ao escrever uma história baseada em The Turn of Screw. Quem leu o livro de Henry James e conhece a obra Jane Eyre, reiteradamente mencionada em A Outra, entenderá que o perigo não está nos fantasmas, porque esses talvez apenas espreitem pelas janelas e pelas portas. Miss Jessel e Quint pressentiram “desde o primeiro dia, que ela era uma inimiga” (Pereira, 2010: 64); que faria “qualquer coisa para os ‘salvar’” (Pereira, 2010: 64).
Finalmente podemos colocar a questão: por quem está apaixonada a precetora de
cabelo castanho? Pelo senhor de Bly, seria a resposta mais óbvia, mas talvez não a única
possível. Contudo, e apesar de conseguir manter magistralmente a ambiguidade, tanto
na crónica de 2004 como em A Outra, insinua-se no texto de Ana Teresa Pereira, à
semelhança do que fazia notar James, que o fantástico serve apenas para falar da
realidade. Evidentemente que, tal como acontece com os textos de Henry James,
podemos ler os de Ana Teresa Pereira com um duplo sentido. Deste modo, pode ler-se a
narrativa como a história da loucura da nova precetora de Miles e Flora, percebendo-se
que a verdadeira paixão da jovem de cabelos castanhos seria Miles, com todas as
consequências e interpretações que tal facto possa ter:
Seu demónio. Eles são meus.
Não é verdade. Ela continua um pouco mais baixo.
Ele é meu.
O que vais fazer com ele? (Pereira, 2010: 67)
Conclusão
Como assevera Brad Leithauser sobre A Volta no Parafuso, no artigo já citado, o livro de Henry James é um monumento de ousada ambiguidade, intenção que o autor conseguiu manter ao longo dos tempos. De facto, os críticos debruçaram-se, ao longo dos anos, sobre a obra e ainda que cada novo artigo parecesse resolver ou, pelo menos, clarificar o sentido da narrativa, a mestria da diegese revelou sempre ser maior do que qualquer uma das interpretações. A maior beleza do livro reside, precisamente, na forma como James ‘impede’ a possibilidade de/das interpretações, como refere Leithauser (2012: s.p.): “It is rigorously committed to lack of commitment. At each rereading, you have to marvel anew at how adroitly and painstakingly James plays both sides”. O mesmo se pode afirmar em relação ao livro de Ana Teresa Pereira alvo deste breve ensaio, o qual permite interpretações diversas na sua conseguida ambiguidade.
O impulso irresistível de escrever A Outra, na sequência de O Verão Selvagem dos Teus Olhos, revela o culminar da obsessão pelos livros e pelos filmes, muito particularmente por alguns que marcaram e marcam de forma incontestável Ana Teresa Pereira. No caso das obras em apreço, trata-se dos incontornáveis Rebecca, de Daphne Du Maurier, e The Turn of the Screw, de Henry James, livros que “contaminam”, segundo a própria autora, a sua realidade e os seus sonhos, acabando por eivar, do mesmo modo, o mundo das personagens e, finalmente, o dos leitores.
De facto, e como procurámos comprovar, a escritora nascida madeirense regressa sempre aos livros e aos filmes que a fascinam e obcecam, porque vive, como a própria por diversas vezes refere, “apaixonada” por eles tal como por determinadas personagens (as quais, muitas vezes, não se diferenciam dos atores que lhes dão vida, no caso do cinema e do teatro) e por certos lugares e atmosferas, também eles reais, literários ou imaginados. Relembremos o que afirmou, em 2008, acerca deste assunto:
O vale maldito de Enid Blyton, a casa na árvore de A Harpa das Ervas, o banco de madeira que surge em vários contos de Henry James. A rua escura
onde Lillian Gishe Robert Mitchum cantam o mesmo hino, a casa de Londres onde Ingrid Bergman enlouquece aos poucos, enquanto Charles Boyer se afasta no nevoeiro, o hotel de S. Francisco onde Kim Novak volta de entre os mortos para os braços de James Stewart. Acontece o mesmo com os meus livros. (Nunes, 2008: 10 - 11)
A escritora reconhece que, nos seus livros, existe permanentemente um rasto de outros escritores e que sempre desejou reescrever os livros que a “tocam”, mas que, como a própria afirma, essa tarefa “não é possível, a não ser que nos transformemos em Pierre Menard
14(e mesmo ele não conseguiu), criamos um mundo que nunca existiu antes, onde nos podemos perder de novo, e ser felizes, ou infelizes, como fomos uma vez” (Nunes, 2008: 10-11).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amaro, Teresa de Jesus Salgado Patrícia Cortes. 2008. A construção de si: Ana Teresa Pereira e a escrita como edificação de um universo literário e cultural. Tese de Mestrado. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
Baker, Cathy .2008/2012. The Mysterious Models of John William Waterhouse.
Disponível em <http://www.johnwilliamwaterhouse.com/m/articles/50015/>; consulta a 18/12/2012.
Borges, Jorge Luis. 1998. Obras Completas. Mem Martins: Círculo de Leitores. ISBN 972-42-1791-4).
Brooke–Rose, Christine. 1979. “The Concept of Ambiguity - The Example of James by Shlomith Rimmon”. Poetics Today, Vol. 1, No. ½, Duke University Press: 397-402.
Foxon, David (1965), Libertine Literature in England, 1660-1745. Thirteen Plates.
Hafidh, Sumia. 2006. “Henry James. The Turn of the Screw - Ghost story, or study in libidinal repression?”, September. Disponível em http://www.literature-study- online.com/essays/henry-james.html; consulta a 01/12/2012>.
James, Henry. 1986. The Turn of the Screw and the Aspern Papers. London: Penguin Books.
__________. 1995. A Arte da Ficção. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Ed. Imaginário.
__________. 1996. The Turn of the Screw. Edited by Paul Roberts.
14 Recorde-se o conto de Jorge Luis Borges Pierre Menard, autor del Quijote (Ficciones, 1944), obra tantas vezes usada para discutir as questões da autoria, apropriação e interpretação literárias.