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Agora num outro plano, e sem que isto deva ser compreendido como uma crítica dirigida ao legislador, foi possível detetar ao longo do Decreto n.º 23/XV alguns casos de má técnica legislativa

E. Análise em concreto das questões de constitucionalidade levantadas pelo requerente

2. Agora num outro plano, e sem que isto deva ser compreendido como uma crítica dirigida ao legislador, foi possível detetar ao longo do Decreto n.º 23/XV alguns casos de má técnica legislativa

as suas dúvidas jurídicas sobre determinadas normas que integravam um decreto anterior que já tinha merecido a sua censura política. Sucede que, uma vez mais se reitera, atendendo ao teor do pedido agora em apreciação, tal manifestamente não sucedeu. E isto é particularmente patente no ponto 10.º do pedido do PR, em que ele dá como dado adquirido a opção legislativa em apreço:

“10.º É neste contexto que se afigura essencial que o Tribunal Constitucional se pronuncie quanto à questão de saber se, no quadro da opção fundamental ora assumida, o legislador cumpriu as obrigações de densificação e determinabilidade da lei, antes exigidas, ademais numa questão central em matéria de direitos, liberdades e garantias”. Mais ainda, remata o seu arrazoado da seguinte forma: “11.º Como se compreende, como já teve ocasião de afirmar o Tribunal Constitucional, uma indefinição conceptual não pode manter-se, numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível” [itálicos acrescentados].

2. Agora num outro plano, e sem que isto deva ser compreendido como uma crítica dirigida ao

morte. De forma necessariamente simplificadora, a autodeterminação implica a possibilidade de fazer escolhas. Fazer escolhas pressupõe a existência de (reais e efetivas) alternativas. Por assim ser, é importante garantir a afirmação de uma vontade de antecipação da morte adequadamente fundada e, por isso, juridicamente atendível, e não de uma vontade que emerge da falta de opções, designadamente por eventuais omissões do Estado na proteção dos mais frágeis (para alguns exemplos, extraídos da realidade do Canadá, de como se podem tornar pouco nítidos os contornos desta fronteira, veja-se a reportagem intitulada Disturbing: Experts troubled by Canada’s euthanasia laws, da autoria de Maria Cheng, disponível em https://apnews.com/article/covid-science-health-toronto7c631558a457188d2bd2b5cfd360a867).

Resumidamente, o que está aqui em causa não é exigir que o Estado assegure um determinado nível de cuidados paliativos ou que estabeleça o acesso a este tipo de cuidados como condição sine qua non para se poder requerer a morte medicamente assistida. O que se pretende é que o legislador democrático, que expressamente associou os cuidados paliativos à morte medicamente assistida (são sempre assegurados), e que fundamenta esta última num “direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade”, apresente soluções jurídicas que deem uma resposta efetiva e coerente com esse seu propósito, e que as apresente com a máxima clareza.

Por último, decorre, quanto mais não seja, da dimensão negativa do direito à vida, que o Estado, antes de permitir aos cidadãos escolher entre duas modalidades de morte medicamente assistida, tem o dever jurídico-constitucional de assegurar que eles possam efetivamente decidir entre a vida e a morte. E tem de fazê-lo de forma coerente e honesta. Se garante de forma absoluta e sem exceções (v. supra artigo 4.º, n.º 6) que será sempre assegurado o acesso a cuidados paliativos (solução que os doentes poderão ou não aceitar), não pode mais adiante utilizar uma fórmula dúbia que possa admitir a conclusão de que, afinal, os cuidados nem sempre terão de ser assegurados, tudo dependendo das disponibilidades do momento (v. supra artigo 5.º, n.º 1).

2.2. Passando a um outro caso, suscita-nos fundadas dúvidas quanto à sua bondade constitucional a solução preconizada no artigo 128.º do decreto em apreço, quando referida ao artigo 139.º do Código Penal (doravante, CP).

Por força do artigo 128.º do Decreto n.º 123/XV é acrescentado um n.º 2 ao artigo 139.º do CP (com a epígrafe “Propaganda do suicídio”), com o seguinte teor:

“2. Não é punido o médico ou enfermeiro que não incitando nem fazendo propaganda, apenas preste informação, a pedido expresso de outra pessoa, sobre suicídio medicamente assistido, de acordo com o n.º 3 do artigo 135.º”.

O n.º 1 do dispositivo em questão dispõe do seguinte modo:

“Quem, por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar suicídio, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.

Por último, é este o teor do n.º 3 do artigo 135.º (“Incitamento ao suicídio”) igualmente acrescentado pelo Decreto n.º 123/XV:

“A conduta não é punível quando realizada no cumprimento das condições estabelecidas na lei n.º ----/---”.

A dúvida principal, mas não a única, que se nos coloca é a de saber o “especialista em psicologia clínica”, que também pode/deve intervir no procedimento da morte medicamente assistida, podendo prestar informações ao doente, não está salvaguardado da punibilidade, como o estão o

“médico” e o “enfermeiro”.

Relativamente à intervenção do especialista em psicologia clínica, vejam-se os n.os 7, 8 e 9 do artigo 4.º (“Abertura do procedimento clínico”) e o n.º 4 do artigo 7.º (“Confirmação por médico especialista em psiquiatria”):

“7 – Ao doente é assegurado, ao longo de todo o procedimento, o acesso a acompanhamento por parte de um especialista em psicologia clínica.

8 – Para efeitos do disposto no número anterior, no prazo de 10 dias úteis a contar do início do procedimento, o doente tem acesso a uma consulta de psicologia clínica, cuja marcação é da responsabilidade do médico orientador, de modo a garantir a compreensão plena das suas decisões, no que respeita a si próprio e àqueles que o rodeiam, mas também o esclarecimento das relações e da comunicação entre o doente e os familiares, assim como entre o doente e os profissionais de saúde que o acompanham, no sentido de minimizar a possibilidade de influências indevidas na decisão.

9 – O acompanhamento por parte de um especialista em psicologia clínica a que se referem os números anteriores é obrigatório, salvo se o doente o rejeitar expressamente”.

“4 – A avaliação necessária para a elaboração do parecer referido no n.º 1 envolve, sempre que a condição clínica do doente assim o exija, a colaboração de um especialista em psicologia clínica”.

Antes de mais, diga-se que não são muito claros os termos em que poderão/deverão intervir os especialistas em psicologia clínica. De acordo o n.º 9 do artigo 4.º, o acompanhamento por especialista em psicologia clínica deverá sempre ocorrer, “salvo se o doente o rejeitar expressamente”. De acordo com o n.º 4 do artigo 7.º, a colaboração do especialista em psicologia clínica deverá ocorrer “sempre que a condição clínica do doente assim o exija”). Como se pode constatar, as duas prescrições não estão propriamente em harmonia. Mas o maior problema nem sequer é esse. Vejamos.

Como parece resultar dos preceitos enunciados, o especialista em psicologia clínica poderá ser acusado de prestar informação sobre suicídio assistido (o n.º 8 do artigo 4.º não exclui esta possibilidade) e punido por esse facto, diferentemente do que sucede com os médicos e enfermeiros que igualmente prestem informações. Com o que, além da eventual violação do princípio da determinabilidade da lei, estará também em causa um tratamento diferenciado injustificado dos intervenientes do procedimento clínico que não se baseia em nenhum fundamento razoável, não se percebendo qual a razão deste tratamento diferenciado, penalizador dos especialistas em psicologia clínica, que, nessa medida, resulta discriminatório em violação do artigo 13.º da CRP.

Resumindo este segundo ponto da nossa declaração de voto, diríamos que a morte medicamente assistida constitui a última escolha de um ser humano em estado de profundo sofrimento e vulnerabilidade. Por assim ser, quando está em causa o direito à vida e o controlo de soluções legislativas que permitem o seu termo com ajuda ou assistência médica, a tolerância às dúvidas que suscitam os conteúdos normativos deve ser mínima (pelo menos, enquanto não for possível ressuscitar os mortos!). Mais ainda, não podemos deixar de relevar, a latere, que a ininteligibilidade da lei, designadamente quando resulta da utilização de conceitos jurídicos indeterminados, não configura uma questão puramente ou exclusivamente jurídica. Com efeito, a identificação precisa dos órgãos que adotam decisões legislativas, na medida em que estas encerrem opções políticas, é fundamental para o apuramento de responsabilidade política e accountability dos governantes. Em nome de um jogo democrático transparente é preciso que os cidadãos consigam distinguir quem adotou as opções políticas, quem se limitou a executá-las em obediência à lei, e quem as controlou em obediência à Constituição.

Maria Benedita Urbano

* V. JOÃO CARLOS LOUREIRO, “Cuidados paliativos, Autonomia e Constituição. Algumas considerações em torno da «morte medicamente assistida»” (disponível em https://apps.uc.pt/mypage/faculty/fd_loureiro/pt/direitocoimbraloureiropub2014): os modelos mais permissivos tendem a assegurar a disponibilidade de cuidados paliativos: “[…] [se] esquecermos a história singular dos Países Baixos, onde a questão dos cuidados paliativos foi reiteradamente suscitada e abertos caminhos num tempo da sua incipiência, os casos europeus que se lhe seguiram – falamos da Bélgica e do Luxemburgo –, vieram articulados com medidas nessa linha.

Na Bélgica, apresentou-se inclusivamente um paradigma de cuidados paliativos integrados onde se pretende colocar, como solução última, a morte assistida, o que está muito longe de ser pacífico.

Contudo, se a chamada morte assistida não é parte dos cuidados paliativos, é hoje consensual que a sua disponibilização – a possibilidade de acesso, não a obrigatoriedade –, corresponde a uma exigência do sistema. Isto mesmo se vê no plano comparado e também no diploma aprovado, na esteira dos projetos apresentados. Estamos no campo do chamado “cuidado devido” (due care), num tempo onde se convoca a ‘morte paliativa’, distinta de uma ‘morte controlada’ e de uma

‘morte preventiva’” (pp. 2-3). Como sublinha o mesmo autor, para não lermos “[…] os direitos económicos, sociais e culturais como meras promessas, degradando, nesse ponto, a Constituição a uma carta de boas intenções, a um simples programa, eventualmente com alguma tutela no que toca ao que já estivesse concretizado, por via de proteção da confiança […]” (p. 27), teremos de confrontar essa previsão com a realidade daquilo que pode efetivamente ser prestado. Ora, o panorama dos cuidados paliativos em Portugal não permite ter certezas quanto à garantia do acesso efetivo a esses cuidados. Na verdade, consultando o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos 2021-2022, disponível em https://www.sns.gov.pt/sns/cuidados-paliativos/, pp. 19 e ss., das 54 Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos necessárias para a população, encontravam-se constituídas 24, assinalando-se recorrente falta de recursos; quanto a Unidades de Cuidados Paliativos, apenas duas regiões (Centro e Algarve) demonstram disponibilidade de camas em

número próximo do que são as necessidades estimadas (para uma análise mais detalhada destes dados, cf. João Carlos Loureiro, Cuidados paliativos…, cit., pp. 35 e ss.), para além de que o nosso país é um dos que menos investem em cuidados de longa duração (cf. o relatório da OCDE Health at a Glance de 2021, disponível em https://doi.org/10.1787/19991312, pp. 199, 203 e 269). Também o parecer do CNECV apresentado no decurso do procedimento legislativo salienta, de forma clara, que “[…] [além] da colocação em causa do princípio da autonomia, a atual redação do n.º 5 do art. 4.º, dos projetos de lei, induz a uma leitura não conforme com o princípio da igualdade. Ali se refere que “ao doente é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos”, mas é preciso que eles existam e sejam de excelência, o que não sucede com cerca de 80% dos doentes que deles necessitam, o que poderá colocar sérias dúvidas sobre a real existência de uma livre alternativa.

Maria Benedita Urbano

DECLARAÇÃO DE VOTO

Subscrevo a pronúncia, pelas razões que se seguem.

1. Na declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 123/2021, demarcando-me da posição que então

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