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O Quiasmo da Tradução – metáfora e verdade

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Academic year: 2021

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Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br

©2019 Carla Canullo

Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C235q

Canullo, Carla

O quiasmo da tradução: metáfora e verdade/ Carla Canullo; tradução Íris Fátima da Silva Uribe, Luis Uribe Miranda. - 1. ed. - Jundiaí [SP]: Paco Editorial, 2019. 404p.; 21cm. (Coleção Filosofia italiana; 2)

Tradução de: Il chiasmo della traduzione: metafora e veritá Inclui referências e índice remissivo

ISBN 978-85-462-1999-5

1. Linguagens e línguas - Filosofia. 2. Verdade - Filosofia. 3. Tradu-ção e interpretaTradu-ção. I. Uribe, Íris Fátima da Silva. II. Miranda, Luis Uribe. III. Título. IV. Série.

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

20-62376 CDD 418.03

CDU 81’25 Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani

Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer

Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Cristóvão Domingos de Almeida Prof. Dr. Eraldo Leme Batista

Prof. Dr. Fábio Régio Bento

Prof. Dr. Gustavo H. Cepolini Ferreira Prof. Dr. Humberto Pereira da Silva Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Prof. Dr. Marco Morel

Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Narciso Laranjeira Telles da Silva Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias

Profa. Dra. Rosemary Dore Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa

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(6)
(7)

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

9

PREMISSA

15

1. TRADUZIR

27

1. Onde se põe a questão 27

2. Uma dupla des-regionalização, ou seja:

a ampliação da hermenêutica e da tradução 52

3. Interpretação e tradução 66

4. Atque nihil grece dictum est, quod latine dici nonpossit! 83 5. Da tradução como paradigma à la

Veranschaulichung metaforal 93

6. O sentido de um percurso 108

2. NO LABIRINTO DA TRADUÇÃO: O PÓLEMOS DA TRADUÇÃO

111

1. Do conflito das traduções ao conflito da tradução 111 2. Um contato sem quiasmo: teoremas para

a tradução versus poética da tradução 115

3. Os contrastes da equivalência 125

4. Intraduzível – coração polêmico da tradução 135 5. Dentro do labirinto: políticas e éticas da tradução 146 6. Wiederholung da tradução: o pólemos incontornável 166

7. Na encruzilhada do texto: a tradução 175

8. O sentido de um percurso 188

3. QUEM TRADUZ?

191

1. Onde se põe a questão do quiasmo? 191

2. Quem se põe 203

3. Quem se traduz: identidade oikológica

(8)

6. O quiasmo perdido? 265

4. METÁFORA E VERDADE – O QUIASMO DA TRADUÇÃO

269

1. O quiasmo se põe 269

2. Repetições da verdade 275

3. Outro termo do quiasmo, a metáfora 296

4. Os dois termos do quiasmo, simultaneamente 324 5. O quiasmo da tradução: metáfora e verdade – nos efeitos 340 6. Possibilidade de uma tradução revelativa 346

A CAMINHO DO CONCRETO

359

REFERÊNCIAS

369

(9)

A tarefa de traduzir e seu significado filosófico é o que está em jogo neste livro, ou seja, a tradução que embora sen-do tarefa de linguistas, tradutores e intérpretes é, ao mesmo tempo, um objeto de reflexão filosófica. Nesse sentido, im-pulsiona a pesquisa filosófica sobre a filosofia da tradução ainda pouco explorada no Brasil e no mundo. É, justamen-te essa, a justamen-tentativa do livro da professora Carla Canullo da Universidade de Macerata, Itália, intitulado: O quiasmo da

tradução: metáfora e verdade, o qual temos o prazer de

apre-sentar ao público de língua portuguesa, como segundo volu-me da Coleção de Filosofia Italiana, na tradução do original italiano de Íris Fátima da Silva Uribe e Luis Uribe Miranda.

Com um sofisticado embasamento teórico e uma atua-lizada bibliografia, a profa. Canullo desenvolve, em quatro capítulos, isso que é explicitamente enunciado na premissa do texto, no que diz respeito à função de gatilho e deto-nador da tradução. A autora afirma que “esse livro é uma reflexão – entre muitas possíveis – sobre o porquê dessa função pertencer à tradução e ao traduzir, reflexão que será conduzida compreendendo a tradução como um entrecru-zamento, um quiasmo que decide seu acontecer efetivo” (p. 12-13 do original). A premissa não admite dúvida e afirma que esse livro é uma reflexão sobre a tradução e a ação de traduzir, uma reflexão que se une a outras possíveis, sem a pretensão de se impor como única compreendendo a tra-dução como um quiasmo, um entrecruzamento no qual ela acontece. Isto é, que o quiasmo, enquanto figura retórica permite que os elementos que se entrecruzam mantenham a sua diferença (p. 13) e, por conseguinte, permitem

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le-vantar a hipótese que quando se traduz a metáfora e a ver-dade, no entrecruzamento, ainda podem ser distinguidas pois permanecem sendo diferentes. A figura do quiasmo torna-se deste modo central para pensar uma filosofia do traduzir, pois, como afirma Canullo, esclarece a questão filosófica e linguística sobre uma boa ou má tradução, so-bre se a tradução consegue verter na língua de chegada o que foi dito verdadeiramente na língua original ou de par-tida e, também, se a tradução estabelece uma relação que modifica ao tradutor. No fundo dessa reflexão coabitam os aportes da filosofia intercultural e sua possível relação com a hermenêutica filosófica na sua declinação intercultural, pois não é possível pensar uma filosofia da tradução e do traduzir sem levar em consideração os elementos histórico--culturais presentes tanto na língua de partida, o original, quanto na língua de chegada, dado que sem esse quiasmo a compreensão torna-se uma tarefa impossível.

Assim sendo, a tarefa de traduzir não é uma mera ação mecânica que estabelece uma distância entre o texto origi-nal e o tradutor, ao contrário, parafraseando Gadamer, esta-belece uma relação de transformação em forma. O traduzir modifica, ao mesmo tempo, o original e ao tradutor pois tra-duzir é também tratra-duzir-se, modificar-se sem por isso deixar de ser o que se é. O quiasmo próprio do traduzir entrelaça o tradutor e a obra original, nesta ele põe a questão da iden-tidade e diferença de ambas as partes do ato de traduzir. O conceito que a autora utiliza para dar conta dessa questão é identidade oikológica porque o existente que traduz faz uma experiência do mundo do texto e precisa morar nesse mundo (p. 133). Eis, no nosso ponto de vista, uma chave de leitura possível e frutífera do livro de Carla Canullo.

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O terceiro capítulo intitulado “Quem traduz?” é o tópos escolhido pela autora para desenvolver a relação entre os conceitos de tradução, metáfora, verdade e quiasmo. No início desse capítulo, Carla Canullo afirma que a questão do quiasmo aparece ligada ao pólemos da tradução, numa clara referência a Paul Ricoeur, no momento em que acon-tece a repetição da mesma. O quiasmo, segundo a profes-sora de Macerata, entrecruza as metáforas e a verdade na tradução não por uma casualidade, arbitrariedade ou ocasionalidade, senão porque em toda ação de traduzir, no acontecer efetivo da tradução, ele expressa esse fazer próprio como póiesis (p. 127). O quiasmo, neste sentido, é aquele que permite o acontecer do traduzir, seu produ-zir uma tradução, como copertença de metáfora e verdade mostrando o ser da tradução na sua identidade oikológica. Embora o quiasmo seja o que unifica o traduzir na coper-tença de metáfora e verdade, é importante salientar que ele acontece em um quem traduz e onde traduz. A questão movimenta-se, deste modo, em direção ao sujeito da tradu-ção que na atradu-ção de traduzir é modificado sem perder a sua identidade, no sentido de um Soi-Même comme un autre

ri-coeuriano, gerando assim a passagem do quem traduz para

o quem se traduz e onde se traduz. A resposta para essa questão será novamente a identidade oikológica.

O conceito de identidade oikológica, e Carla Canullo é consciente disso, tem que fazer as contas com o conceito metafísico de identidade. Isto é, que a identidade de algo ou alguém seria estável e sempre a mesma porque o ser de algo não pode mudar. A afirmação da identidade, nesse sentido, corre o risco de não permitir a historicidade e mutabilida-de do existente gerando o problema da impossibilidamutabilida-de mutabilida-de

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traduzir. O caminho de saída desse impasse consistirá em levar a sério os aportes de Martin Heidegger e Paul Ricoeur para os quais, por um lado, não pode existir identidade sem diferença e o mesmo sem o outro e, por outro, o ser e o existente estão atravessados pela temporalidade e histo-ricidade. A temporalidade e historicidade incorpora como próprio a mutabilidade do ser do existente de modo tal que as diferenças e os outros estão presentes na constituição da própria identidade a qual, por sua vez, pode ser modificada múltiplas vezes pela temporalidade e historicidade ou, como diz Carla Canullo, pelas experiências vividas pelos sujeitos. É justamente neste ponto que se introduz a questão inter-cultural, porque as experiências de vida que modificam o ser dos sujeitos são, também, culturais. Mas, como a cultura não é estática e sempre a mesma, ela também modifica aos sujeitos que fazem acontecer as traduções. Ainda mais, a questão cultural é relevante pois ela mostra isso que filo-soficamente temos nomeado com Heidegger, mundo, a tal ponto, que o Dasein é constitutivamente um ser-no-mundo. Como sabemos, o ser-no-mundo também é um ser-con e, por conseguinte, nos permite afirmar que existir é habitar um mundo com outros e que, pela compreensão o mundo se torna mundo para nós. A pergunta formulada por Carla Canullo sobre o quem traduz e desde onde traduz, pode ser respondida por um existente que habita o mundo no tempo e na história e que nesse, como consequência das experi-ências, a partir do conceito de identidade oikológica. Uma identidade que é fruto de seu morar na linguagem e que no conceito do quiasmo, que não é só uma figura retórica, faz acontecer a tradução que, por sua vez, transforma a quem traduz no seu próprio ser-no-mundo com outros. Traduzir,

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podemos afirmar, é produzir e transformar uma identida-de ou, em outro sentido, a iidentida-dentidaidentida-de identida-deve traduzir-se no quiasmo de identidade e diferença, de metáfora e verdade.

A tradução, segundo o que temos afirmado, não pode-ria ser compreendida como um fazer puramente técnico de, neste caso, pôr uma palavra em português no lugar de uma palavra italiana. A tradução enquanto identidade oikológica, na tensão do quiasmo, produz a tradução e transforma ao tradutor, ao mesmo tempo, que torna a tradução irreversí-vel. Isto é, que ao tentar fazer o caminho em sentido contrá-rio, ou seja, uma vez produzida a tradução, tentar produzir a partir dessa o texto na língua original, o resultado sempre é um outro texto, diferente do original, mas na mesma língua do original mostrando, deste modo, a sua irreversibilidade.

Contudo, mesmo que a tradução seja irreversível, ela também revela uma outra característica, dada sua condição histórico-cultural, isto é, seu caráter ético e político. Existe uma ética da tradução e uma política da tradução que se ma-nifesta no traduzir: a hospitalidade. Quando uma língua tra-duz outra língua acontece um acolhimento do outro, onde a língua original é aceita e pode hospedar-se e, ainda mais, morar na casa da outra língua. Deste modo, se quebra a hie-rarquia das línguas, pois não é menos a língua que traduz e mais a língua original, ou vice-versa, ao contrário, ambas são enriquecidas e modificadas no ato de traduzir que, ao mesmo tempo, põem em evidencia esse elemento próprio da tradução em seu sentido ético e político. Traduzir é uma ação ética e política de hospitalidade, de acolhimento do ou-tro, de um outro que precisa se traduzir para manter, mes-mo que se mes-modificando, a sua identidade que, por sua vez, está sendo sempre transformada pela história e pela cultura.

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O livro de Carla Canullo, rico em diálogos entre diver-sas filosofias, desafia ao leitor a pesquisar, refletir e tirar as consequências de aceitar a tese do quiasmo da tradução para além de um artifício retórico e ampliar os limites da tradução e da filosofia para tentar, neste entrecruzamento, pensar uma filosofia da tradução.

Prof. Dr. Luis Uribe Miranda1

1. Doutor em Filosofia pela Università degli Studi di Torino, Itália. Professor no departamento de Filosofia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Coor-denador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Italiana (GEPFIT) e codiretor da Coleção Filosofia Italiana na Paco Editorial junto a Íris Fátima da Silva Uribe.

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Alguns célebres tradutores encontraram-se para parti-cipar de um congresso, organizado numa cidade do sul da Argentina, Porto Esfinge. O evento foi atingido por uma sé-rie de homicídios que obrigou aos seus organizadores a sus-pender todas as conferências. Mas, o mistério complicou--se em torno da misteriosa língua do Aqueronte que alguns dos presentes compreendem, língua singular que se fala só quando se traduz e que, quando se traduz, mata condenan-do ao silêncio. Argumento sobre o qual o tradutor mais cé-lebre, o último que morrerá entre aqueles que são capazes de traduzir esta língua, teria a sua conferência:

O verdadeiro problema para o tradutor, disse, não é a distância entre as línguas ou entre os mundos, não é o jargão, nem a indefinição, nem a musica-lidade; o verdadeiro problema é o silêncio de uma língua […] porque tudo pode ser traduzido, toda-via não o modo no qual uma obra silencia; disto não tem tradução possível2.

O tradutor da realidade responde à ficção do romance. Daoud Hari, em O tradutor do silêncio, assume a tarefa de traduzir e dar voz ao silêncio da sua gente vítima de geno-cídio, o povo de Darfur. O tradutor não é apenas aquele que 2. De Santis, Pablo. La traducción. Barcelona: Destino, 1999; La traduzione. Trad. E. Rolla. Palermo: Sellerio, 2001, p. 79-80.

N.T. [Todas as obras já traduzidas para português do Brasil, ou em situações específica para o português de Portugal, serão indicadas entre colchetes [ ] de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), àquelas que não citam o tradutor, permanecerão do modo que estão publicadas].

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luta com um a língua que se subtrai e, por isso, silencia, mas é aquele que quer dar voz ao que se procura obrigar ao silên-cio. Por isso, a ficção do romance responde à tradução efeti-va da realidade, onde quem traduz empresta a própria voz3.

Estes dois exemplos atestam que, depois de A busca de

Averróis4, a tradução continuou a atrair a atenção da

literatu-ra sobre a tarefa dos tliteratu-radutores. Sensibilidade que não faltou nem sequer à filosofia que se interrogou e se interroga sobre os diversos percursos que a tradução abre ao pensamento, graças a sua capacidade de sustentar a pluralidade do real.

No entanto, a tradução não é simplesmente exigida pela pluralidade de línguas e culturas, mas nela está a própria pluralidade. Percebeu claramente José Ortega y Gasset quan-do, falando de “miséria e esplendor da tradução”5, expôs as

várias maneiras que se pode dizê-la. Com efeito, a ambi-valência de miséria e esplendor não seria identificável se a tradução não fosse já um gesto que, acontecendo, revela a polivocidade que contém em si, aprendo ao mesmo tempo a multiplicidade da realidade (scilicet das línguas, das culturas, mas de cada expressão do ser vivo). Certamente, o filóso-fo espanhol, quando falava da dupla utopia do traduzir, não 3. Hari, Daoud. The Translator. London: Peguin Books, 2008; Idem. Il traduttore del silenzio. Trad. A. Carena. Milão: Piemme, 2009.

4. Borges, Jorge Luis. La busca de Averroes. In: Idem. El Aleph. Buenos Aires: Losada, 1949; Idem. La ricerca di Averroè. In: Idem. Aleph. ed. it. organizado por F. Tentori Montalto. Milão: Feltrinelli, 2005, p. 89-100. N.T. [ Borges, Jorge Luis. A busca de Averróis. In: O Aleph, 1949. Trad. Flávio José Cardozo. Alianza editorial]. Disponível em: http://bit.ly/2ATtrNd. Acesso em: 31 mar. 2019. 5. Ortega y Gasset, José. Miseria y esplendor de la traducción. España: Universi-dad Jaume I, Servicio de comunicación y publicacione, 2009; Miseria esplendore della traduzione. In: Nergaard, Siri. La teoria della traduzione nella storia. Milão: Bompiani, 2002. N.T. [ Ortega y Gasset, José. Miséria e esplendor da tradução. Trad. Mauri Furlane, Mara Gonzalez Bezerra. Scientia traductionis, Florianópo-lis, n. 13, p. 5-50, 2013].

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olhava a multiplicidade que o ato de traduzir “é” e para qual abre-se. Ele convidava a assumir as dificuldades da tradução, da ilusoriedade da traduzibilidade total e a refletir sobre o fato que a tradução, como toda atividade do homem, é uto-pia. Utopia que torna a tradução impossível e miserável, mas com o único objetivo de poder finalmente aproveitar o inapa-rente esplendor. Por isso, “¡La traducción há muerto! ¡Viva la traducción! A tradução está morta, viva a tradução!”.

Neste anúncio espreita-se a tensão da tradução, a qual lhe permite ser um instrumento do pensamento que a filo-sofia recorreu e, ao mesmo tempo, que lhe permite ser uma “ciência”, que se trate de um ramo da linguística ou de uma atividade que tem as suas regras, as suas técnicas e as suas teorias6. E, mesmo que este não será um livro sobre a

tradu-ção, se limitará a discutir isso que o ato de traduzir dá tam-bém à filosofia (motivo para o qual se falou de filosofia e

filosofias da tradução7), a importante obra de pesquisa que

se realiza em torno da tradução, cujo êxito mais tangível são os manuais para tradutores8, embora permanecendo no

contexto, não foi ignorada. Dada, então, a abundância de pesquisas e estudos, por que se ocupar de tradução?

6. Uma apresentação sintética destas teorias se encontra em: Nergaard, Siri. Te-orie contemporanee della traduzione. Milão: Bompiani, 1995. Da mesma autora consultar também La teoria dela traduzione nella storia. Milão: Bompiani, 1993. Ambos os textos estão disponíveis no formato Kindle, do qual será citado. 7. Como fizeram Jervolino in, D. Per una filosofia dela traduzione. Brescia: Mor-celliana, 2008 e Costa, Maria Teresa. Filosofie della traduzione. Milão: Mimesis, 2012. Sobre o tema: Pititto, Rocco; Venezia, Simona (ed.). Tradurre e comprende-re. Pluralità dei linguaggi e delle cultucomprende-re. Roma: Aracne, 2006.

8. Na Itália consultar, por exemplo, Bruno Osimo, que também organizou e difundiu a obra de Peeter Torop. Total’nyiperevod. Tartu: Izd.vo Tartuskogo Universiteta, 1995; La traduzione totale. Tipi di processo traduttivo nella cul-tura. Milão: Hoepli, 2009. É também o autor de: La traduzione totale. Spunti per lo sviluppo dela scienza della traduzione. Ou, para dar um outro exemplo: Faini, Paola. Tradurre. Manuale teorico e pratico. Roma: Carocci editore, 2008.

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Em primeiro lugar, porque a sua miséria faz ecoar o seu esplendor e, se é verdadeiro que uma tradução pode ser uma má utopia animada pela ilusão de ser capaz de portar um texto em outro lugar (em outra língua e cultura), tem também uma segunda utopia que, na consciência do que distingue línguas e culturas, faz o esforço de criar uma pon-te para um pon-texto que se leva à própria língua. Essa “ponpon-te para”, se de um lado, permanecerá sempre nas proximida-des do original, por outro lado, fará sim, que a tradução – e aqui está o seu esplendor – represente a possibilidade de conhecer novamente aqueles textos que foram esquecidos ou abandonados porque concluíram o seu ciclo histórico. Aconteceu aos clássicos gregos e latinos (exemplo proposto por Ortega y Gasset) os quais, justamente graças à tradu-ção, continuam a ensinar, não obstante a distância histó-rica que nos separa deles. Sobre esta distância o filósofo espanhol termina o célebre texto reforçando a inutilidade de toda tentativa que pretenda domesticar as diferenças en-tre épocas, culturas, mas também enen-tre línguas (sinal da miséria da tradução) e declarando a felicidade de toda ten-tativa que, mantendo a distância, chegue a forçar a língua de chegada através da língua de partida; descobrindo, por fim, através desta segunda, os recursos que a primeira (a língua de chegada) ocultava em si e, por isso, não conhecia (recursos que encontra graças ao esplendor da tradução)9.

9. Para o texto de Ortega y Gasset, que foi resumido rapidamente, nos limitamos à citação destas linhas conclusivas: “O que (os leitores) apreciam é o contrário: o portar ao limite extremo do inteligível a possibilidade da sua língua para que trans-pareça nela os modos de falar próprio do autor traduzido. As traduções alemãs dos meus livros são um exemplo de tudo isto. Em poucos anos foram feitas mais de quinze edições. E o mérito disto, que ao contrário seria inexplicável, é alcançado pela tradução. Na verdade, a tradutora das minhas obras forçou até ao limite má-ximo a tolerância gramatical da língua alemã para reportar com precisão isto que

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Trinta anos depois destas célebres reflexões, Jan Patočka escreve um texto recentemente traduzido para o francês, que remonta a 1968 e que foi publicado pela primeira vez na revista Dialog, órgão dos escritores checos que hospedava uma seção de ações de tradutores10. O próprio Patočka

refle-te sobre a tradução dos clássicos, salientando esrefle-te trabalho como produtivo e necessário para fazer avançar a filosofia checa porque (1) põe à disposição dos estudiosos textos clássicos que, de modo contrário, não seriam acessíveis e (2) contribui para a criação de um vocabulário novo, para o qual converge a pesquisa filosófica. Depois de ter definido o traduzir em três fases distintas (transposição literal, pa-ráfrases e tradução propriamente dita), Patočka aplica estes três momentos a interpretação de Aristóteles, ao qual dedi-cou importantes obras. Na tradução filosófica sobretudo, o tradutor deve seguir o estilo do autor que traduz, sendo o pensamento e a linguagem estritamente ligados, e isto tam-bém ao custo de forçar a própria língua para estilos e pa-lavras pouco usadas, se não ainda desconhecidas. Todavia, uma tradução não só, força a língua na qual chega ou lhe não é alemão no meu modo de falar. Assim, o leitor não necessita de esforço para fazer gestos mentais que são aqueles espanhóis. Deste modo, interrompe um pouco o próprio cansaço e se diverte para ser ao menos por um momento uma outra pes-soa”. Deste texto existem duas traduções em italiano, uma publicada em Nergaard, A teoria da tradução na história, op. cit., e uma de Claudia Razza publicada pelo editor o Melangolo (Gênova 2001). Citamos a partir da primeira edição. Sobre a tradução do ponto de vista dos filósofos traduzidos consultar Wittgenstein, Ludwig. Lettere a C.K. Ogden. Sulla traduzione del Tractatus logico-philosophicus. Introdução de L. Perissinotto. Organizado por T. Fracassi e L. Perissinotto. Milão: Mimesis, 2009 e Poggi, Davide. Lost and found in translation? Lagnoseologia dell’Essay lockia-no na tradução francesa de Pierre Coste. Florença: Olschki, 2012.

10. Patočka, Jan. Sur les problèmes des traductions philosophiques. In: Frogneux, Nathalie (ed.). Jan Patočka. Liberté, existence et mon de commun. Le Cercle Herméneutique, Argenteuil, p. 15-27, 2012; o texto foi traduzido do checo por Erika Abrams.

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descobre os recursos. Um texto filosófico traduzido, mesmo quando pertence a uma outra época ou cultura, põe em obra aí onde chega o exercício crítico próprio da filosofia tout

court, e assim exercita a sua capacidade de pôr questões e

modera todo excesso de ceticismo convidando à procura do

sentido. Mas, conclui Patočka, “o mundo atual não é propício

à filosofia, não a compreende, não lhe dá espaço, não sabe que as suas raízes afundam na filosofia, não quer, na sua unidimensionalidade, tomar consciência”11. Por isso,

segun-do dizia Ortega y Gasset sobre o mosegun-do no qual a tradução amplia a língua, o filósofo checo acrescenta a mudança e a ampliação que ela proporciona em uma sociedade onde, tornando acessível a obra de filósofos-desconhecidos, impli-ca o espírito crítico destes autores convidando sociedade e cultura para refletir de outro modo.

Qualquer um dos dois autores, a seu modo, salienta o papel de ignição e de detonador da tradução, um papel que nada retira do excelente trabalho dos tradutores e que, ali-ás, acontece graças ao seu trabalho. Este livro é uma refle-xão – entre as tantas possíveis – sobre o porquê este papel pertence à tradução e ao traduzir, reflexão que será con-duzida entendendo a tradução como um entrelaçamento, um quiasmo que decide o seu acontecer efetivo. Para di-zer isto, e, por conseguinte para realizar esta reflexão, se partirá para um primeiro capítulo em que será seguido um exercício específico de filosofia e tradução, o acontecimento vivido na hermenêutica, avançando depois com alguns ele-mentos para uma possível “filosofia da tradução” (segundo capítulo). Se perguntará, contudo o que acontece a Quem opera a tradução (terceiro capítulo) e, por fim, se dirá do 11. Patočka, op. cit., p. 27.

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quiasmo da tradução, ou seja, do entrelaçamento de metá-fora e verdade que a constitui e que caracteriza o acontecer. Porque, todavia, quiasmo da tradução – e não mais co-nhecido quiasma. Esta figura retórica foi escolhida porque esses dois termos se entrelaçam mantendo a sua diferença. Isto não teria sido perdido nem sequer pelo termo “quias-ma”, massa familiaridade com a conotação que Maurice Merleau – Ponty felizmente inaugurou para indicar a re-versibilidade do corpo e da carne do mundo nas célebres páginas de O visível e o invisível12, poderia ter remetido o

discurso para um contexto filosófico que por sua vez não há de ser presumido pela tradução.

A hipótese que se tentará verificar interrogando o que acontece quando se traduz, é a de que nesse gesto metá-fora e verdade, permanecendo distintas, se intercruzam. Hipótese que será verificada com o escopo de compreen-der por que, quando se traduz, as mudanças acontecem e as amplificações das línguas e das culturas tornam-se comprováveis. Sobretudo, se tentará descobrir por que es-tes dois termos pertencem à tradução é muito sua, surgem do seu próprio acontecer e não são escolhidos por Quem traduz – ou escreve por tradução.

Permanecerá no contexto, em contrapartida, a questão que movimentou o interesse pela tradução e os termos no qual é proposta a discussão, ou seja, o debate sobre a filosofia intercultural e sobre uma possível declinação da hermenêu-tica intercultural. Na Itália, graças a Giangiorgio Pasqua-12. Merleau-Ponty, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964; Idem. Il visibile e l’invisibile. ed. it. organizado por M. Carbone. Trad. A. Bonomi. Milão: Bompiani, 2007; capítulo L’intreccio – il chiasma. N.T. [ Merleau-Ponty, Maurice. O visível e o Invisível. Trad. José Artur Gianotti, Armando Mora D’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2003].

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lotto e a sua escola13, sem querer ignorar outros estudos14,

este debate ficou muito animado, recebendo o testemunho por séculos de traduções e intercâmbios entre culturas e re-ligiões15. Entre os protagonistas destes intercâmbios, estava

o jesuíta de Macerata Matteo Ricci. Embora não tenha se beneficiado unicamente o missionário e homem de cultura ocidental, que havia traduzido e introduzido o cristianismo na China, no seu tradurzir-se noutro lugar se encontram

efetivamente os termos que estão reunidos neste trabalho,

sobretudo a hipótese de uma identidade oikológica que se constitui “diante do” outro e que é o exato contrário de uma identidade fixa e fechada em si mesma, mantida naquilo que reconhece ser os “seus” valores. Ricci, na China, teve a experiência do traduzir-se da verdade e das linguagens adequadas para expressar-se “entre” culturas distintas que ele foi capaz de encontrar. Mostrou, além disso, que tradu-zindo-se, a verdade encontra modos de expressão diversos daqueles nos quais foi inicialmente formulada; modos de expressão que as outras culturas também possuíam e que, na tradução, elas oferecem mostrando a verdade que lhe 13. Consultar, mas apenas como primeira remessa a uma literatura verdadeiramen-te ampla, Pasqualotto, Giangiorgio (ed.). Per una filosofia inverdadeiramen-terculturale. Milão: Mi-mesis, 2008 e East & West. Identità e dialogo interculturale. Pádua: Marsilio, 2003. 14. Como o célebre Trasformazione interculturale della filosofia di Raúl For-net-Betancourt (ed. it. Dehoniana Libri - Pardes Edizioni, Bolonha 2006; ed. or. Transformacion intercultural de la Filosofia, Desclee de Brouwer, Bilbao 2001) e Tomatis, Francesco. Libertà di sapere. Università e dialogo interculturale. Milão: Bompiani, 2009. Consultar igualmente Ferretti, G.; Mancini, Roberto (ed.). Es-sere umanità. L’antropologia nelle filosofie del mondo. Macerata: EUM, 2009 e Berner, Christian; Canullo, Carla; Wunenburger, Jean-Jacques (ed.). Herméneu-tique et interculturalité. Lo Sguardo, n. 20, 2016 (I), Disponível em: http://bit. ly/35sHwyt. Acesso em: 31 mar. 2019.

15. Maurizio Pagano desenvolveu em prospettiva interculturale o tema do spi-rito no volume, por ele organizado, Lo spispi-rito. Percorsi nelle filosofie e nelle culture. Milão: Mimesis, 2011.

(23)

caracteriza e favorecendo não só intercâmbios, mas verda-deiros e próprios encontros e quiasmos. Se Valéry Larbaud invocou e evocou, para a tradução, o nome de São Jerôni-mo16, hoje, na situação “entre” culturas na qual vivíamos, o

nome de Matteo Ricci bem poderia ser evocado17.

Introduzindo uma das obras que Ricci escreveu para traduzir, Il vero significato del “Signore del Cielo”, Alessan-dra Chiricosta apresenta não poucos motivos que justificam a evocação do nome do padre jesuíta18. Esta obra é uma

tradução na qual a intenção originária, escrever o primeiro catecismo católico em língua chinesa, transcendeu o que acontece enquanto se traduz. Com efeito, a questão, desde a escolha do argumento, se torna cultural e, especificamen-te, filosófica, incluindo a questão do “nomear Deus” e dos “nomes de Deus” e, no nome, do modo no qual se traduz Deus mesmo19. Sobretudo, o que estava em jogo não era

en-contrar o nome apropriado, mas “enen-contrar um significante 16. Larbaud, Valery. Sous l’invocation de saint Jérôme. Paris: Gallimard, 1946; Colesanti, Massimo (org.). Sotto la protezione di san Girolamo. Trad. A. Zanatel-lo. Palermo: Sellerio, 1989.

17. Neste caso a literatura também é muito ampla. Consultar: Mignini, Filippo. Matteo Ricci. Il chiosco delle fenici. Ancona: Il Lavoro editoriale, 2005, obra que ressaltamos entre as tantas que este estudioso dedicou ao padre jesuíta contri-buindo para nos fazer conhecer o pensamento; Fontana, Michela. Matteo Ricci. Un gesuita alla corte dei Ming. Milão: Mondadori, 2005; Criveller, Gianni. Matteo Ricci, Missione e Ragione. Milão: Pimedit, 2010. Giuliodori, Claudio; Sani, Ro-berto (ed.). Scienza Ragione Fede: Il gênio di Padre Matteo Ricci. Macerata: EUM, 2012 e muitos outros textos indicados na bibliografia publicada nesta obra. 18. Ricci, Matteo. Il vero significato del “Signore del Cielo”. Trad. e org. A. Chiri-costa. Roma: Urbaniana University Press, 2008.

19. Ibidem, p. 8. Sobre o traduzir-se de Deus, ou seja, sobre o manifestar-se de Deus nos nomes que o traduz em e nos quais se faz conhecer, consultar Sebastian Purce-ll, Translating God: Derrida, Ricœur, Kearney. Journal of Applied Hermeneutics, v. 5, 2012. Disponível em: http://bit.ly/2oaSLLJ. Acesso em: 31 mar. 2019. Consultar igualmente: Ferretti, Giovanni. Il “grande compito”. Tradurre la fede nello spazio pubblico secolare. Assisi: Cittadella Editrice, 2013 e Caltagirone, Calogero. Religioni e ragioni pubbliche. I nodi etici della traduzione. Roma: Edizioni Studium, 2016.

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adequado [...] e maiormente criar um contexto de signifi-cação no qual o nomear Deus pudesse realmente ser por-tador de sentido”20. Por isso a tradução de Ricci, antes de

ser linguística, foi cultural porque procurou conceitos ade-quados para dizer o que a cultura anfitriã (isto é, a cultura chinesa) não conhecia, tornando com isto “inteligíveis ‘dois mundos’”21. Esta obra, no entanto, não mudou apenas a

cul-tura de chegada, chinesa, introduzindo-lhes as novidades, mas, primeiro mudou Ricci, o qual aceitou o repensamento “dos seus degraus interpretativos e da abertura [...] para novos horizontes de sentido”22.

Portanto, Ricci chegou à tradução “linguística”, através de uma tradução cultural e, antes ainda, pela tradução do próprio horizonte de pensamento; melhor, a tradução do texto foi possível graças ao esforço de traduzir antes a pró-pria mentalidade e, mais em geral, os conceitos aprendidos “no Ocidente”. Este trabalho, todavia, não teria sido possí-vel se Ricci não tivesse acolhido o desafio de traduzir a sua própria identidade, transliterando o próprio nome em Li Madou e usando o manto dos monges budistas para ser aco-lhido na China, em conformidade com a diversidade encon-trada na cultura deste país. Sempre em nome desta confor-midade, sucessivamente abandonará o manto budista para acolher o manto do literato confuciano. Mas para além dos diversos acontecimentos da permanência na China e da es-pecificidade da sua missão que criou mais problemas para a Igreja romana do que para o Império Celeste (sobretudo

20. Ricci, Il vero significato del “Signore del Cielo”, op. cit., p. 8. 21. Ricci, op. cit.

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em relação à questão dos rituais23), Ricci é o exemplo do

que a tradução faz e do que nela se transporta. Traduzir é procurar a linguagem mais adequada, falar assim como faz a metáfora, para portar a verdade que se pretende fazer co-nhecer, no caso de Ricci também a matemática e a astrono-mia, disciplinas através das quais se fez admirar na China.

No traduzir para portar uma verdade (certamente não A verdade) diante ao outro, aconteceu, portanto a transfor-mação da identidade de Ricci que, sem abandonar o que ele era aquilo que o tinha conduzido na China (o espírito mis-sionário), soube acolher e receber o outro e a sua verdade. Ricci, identidade que foi traduzida noutro lugar e que desta passagem foi traduzida, reassume em si o significado do quiasmo da tradução: (1) encontrar modos de dizer como a verdade e acontece na própria e em outras culturas; (2) deixar-se traduzir e transfigurar pela verdade que também o outro, nesta tradução, faz acontecer quando oferece o pró-prio universo cultural como terreno no qual procurar ver-dadeiros significados, assim como Ricci procurava o “ver-dadeiro significado do ‘Senhor do Céu’” (Cf: Ricci, op. cit.).

Para esta pesquisa, para pesquisar verdadeiros signifi-cados, a filosofia se pergunta sobre a tradução e sobre o quiasmo de metáfora e verdade que a entrelaça.

***

Agradeço a todos aqueles que durante alguns anos me fizeram pensar e falar em uma língua que não é a minha. 23. Chiricosta retomou em Ricci, op. cit., p. 57-60. Questão interna da Igreja católica romana, criticava à acolhença que Ricci e os outros Jesuítas reservavam às práticas que a cultura chinesa não teria jamais renunciado e a condenação das quais teria consagrado o fracasso da importante missão cultural e religiosa que os Padres estão desenvolvendo.

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Entre eles, quero recordar e agradecer Jean-Luc Marion, Jean Greisch, Philippe Capelle-Dumont, Jean Grondin, Je-an-François Lavigne, Miguel García-Baró López, Emmanuel Falque, Jérôme de Gramont, Danielle Cohen- Levinas, Clau-de Romano, Jean Leclercq, Emilie Tardivel, Garth Green, Andrea Bellantone. Um agradecimento especial a Gaetano Chiurazzi: através de sua amizade, conheci Iris Uribe, a quem agradeço por sua confiança e seu trabalho apaixona-do, e Luis Uribe Miranda. Com eles as palavras da tradução tornam-se uma experiência que atravessa os continentes.

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1. Onde se põe a questão

Duas questões guiam este livro que afronta a tradução do ponto de vista da filosofia: a primeira questão, se é pos-sível dizer como acontece a tradução para além das nume-rosas formulações que desta foram propostas em filosofia e nas diversas teorias que lhes dizem respeito. Se existe, isto é, um núcleo que (1) explique como a tradução faça o que efetivamente faz, ou seja, opere passagens, e que (2) se manifeste, acontece enquanto se traduz. A segun-da questão: sem ignorar jamais que traduzir não é só uma questão filosófica e que é, em primeiro lugar, questão de linguistas, tradutores, intérpretes, o que acontece para a tradução mesma quando é afrontada também em filoso-fia? E que, reciprocamente, ela acrescenta e doa à filosofiloso-fia? Doa “alguma coisa” ou se limita a ser um caso regional, um argumento entre os outros? As duas questões, expostas na ordem da sua urgência, serão tratadas partindo da segun-da para chegar à primeira.

O motivo desta inversão é que, querendo afrontar a tra-dução do ponto de vista da filosofia, ocorre partir desta. No entanto, fazê-lo, significa escolher ao menos no âmbito em que a tradução mesma, em filosofia, colocou-se, para depois lançar o confronto também com outros percursos filosófi-cos e, entre os diversos terreno sem que se enraizou tem

também a hermenêutica, como confirmam as filosofias de

Martin Heidegger, Hans Georg Gadamer, Antoine Berman, Paul Ricœur. O que não faz da hermenêutica o único âmbito filosófico em que foi posto, como se mostrará no segundo

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capítulo dedicado ao pólemos da tradução, mas o considera como um dos âmbitos em que efetivamente foi tratado.

Nessas condições, colocar-se no mesmo âmbito em que a tradução se colocou suscita outra questão: embora reconhe-cendo que a tradução e o traduzir são atos cujo significado é ampliável até a assumir sentidos próprios e impróprios (da tradução de uma língua a uma outra ao “traduzir” as pró-prias intenções), não pode todavia ser ignorado que, quando uma tal ampliação se produzir, traduzir indica também um ato de terminado e circunscrito, assinalando uma ação com a qual se expressa alguma coisa de um outro modo, que se ten-ta dizer em outra língua ou de fornecer explicações. Por isso, traduzir não está (limitando a lista a atos da representação) imaginar, fantasiar, hipotizar, argumentar. E tendo colocado a tradução na hermenêutica filosófica, diga-se desde já que traduzir não é nem se quer só compreender e interpretar. A hermenêutica é, certamente, uma das vias filosóficas que têm oferecido à tradução um âmbito no qual colocar-se em discussão e pôr-se à prova isso que o traduzir faz, opera; isto não implica, todavia, que a tradução se identifica tout court. Na verdade, em alguns casos, a tradução parece gozar de um destino melhor do que a hermenêutica tendo em vista que, para além das fortunas “históricas” desta última, sempre se

traduz. E o se faz, isto é, se traduz, porque uma pluralidade

de diferenças que coabitam e estão juntas devem entender--se, desde sempre e não apenas neste nosso tempo.

No entanto, uma tradução que não seja também inter-pretação e compreensão nem de realidades culturais distan-tes e diferendistan-tes que, algumas vezes, partem de horizondistan-tes de sentido totalmente diferentes daqueles no qual chegam, ar-riscam-se de destinar-se ao revés. Por isso, mesmo que a tra-dução não possa denominada só hermenêutica, o momento

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interpretativo não pode ser excluído dela muito facilmente. Este livro parte deste lugar, deste nodo de tradução e inter-pretação para afrontar o que se vai perguntar, em primeiro lugar, com o que aconteceu hoje com a hermenêutica e, em segundo lugar, se vai perguntar em que modo os aconteci-mentos desta última que a tradução tem em parte comparti-lhado – nos fazem reler hoje a mesma tradução de um modo diferente, permitindo também descobrir como ela acontece, ou a sua “coisa mesma” – e portanto a tradução como “fe-nômeno”. Isto será feito em dois momentos, perguntando: (1) como a hermenêutica se coloca e onde foi criticada; (2) quais, entre as questões que a re-discutem, simultaneamen-te abrem a possibilidade de manifestação do fenômeno da tradução, do seu como, do modo no qual ela acontece.

a. Um momento hermenêutico da razão?

Jean Greisch, em 1985, publicou um texto que, à época, expressava a orientação de algumas das pesquisas que se estava desenvolvendo na França. O volume intitulava-se

L’âge herméneutique de la raison24 e a intenção do autor

era interrogar as razões pela qual a hermenêutica, nascida como disciplina exegética e extra filosófica, alcançou ado-tar-se de um fundamento filosófico que lhe permitiu pôr-se como corrente, precisamente, filosófica.

Greisch tinha por objetivo uma tríplice tarefa: mostrar o sentido descritivo da hermenêutica, traçar algumas li-nhas do debate que nasce da hermenêutica filosófica e, por fim, pôr uma questão eurística no sentido de uma possível razão hermenêutica. Razão que, para Greisch, opera entre os polos da interpretação e da compreensão, que alguns 24. Greisch, Jean. L’âge herméneutique de la raison. Paris: Cerf, 1985.

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têm associados ( Schleiermacher, Heidegger) e outros con-trapostos ( Nietzsche, Dilthey). A sua hipótese é que um momento hermenêutico da razão, ou um paradigma her-menêutico, é um canteiro aberto destinado a continuar a sê-lo por aquele germe da desconstrução ou destruição que Heidegger praticava nos anos vinte do século passado e que a hermenêutica deve conter sempre em si.

Aquela época e a essa razão hermenêutica fez eco, apro-ximadamente nos mesmos anos, Michel Henry, que escre-via em Fenomenologia material:

Como colapso das modas parisienses dos últimos decênios e sobretudo do estruturalismo que repre-senta a forma mais extensiva porque a mais super-ficial […] a fenomenologia aparece sempre mais como o principal movimento de pensamento do nosso tempo. O “retorno de Husserl” é o retorno de uma potência de inteligibilidade que depende da invenção de um método e em primeiro lugar, por uma questão na qual se deixa reconhecer a essência da filosofia. A fenomenologia será para o século XX o que o idealismo alemão foi para o século XIX, o empirismo para o XVIII, a obra de Descartes para o XVII, Tomás de Aquino ou Duns Scoto para a Es-colástica, Platão e Aristóteles para a Antiguidade25.

Sem ignorar o papel que Jacques Derrida desempenhou na França nos mesmos anos. Não é raro, portanto, que em determinadas épocas se sinalize o primado de um ou mais métodos que incidam e determinam o modo filosófico de 25. Henry, Michel. Phénoménologie matérielle. Paris: PUF, 1990; D’Oriano, Pie-tro (org.). Fenomenologia materiale. Tradução E. De Liguori, M. L. Iacarelli. Milão: Guerini e Associati, 2001, p. 61. Também neste caso o título da Premissa è eloquente: La questione della fenomenologia. N.T. [ Henry, Michel. Filosofia e Fenomenologia do Corpo. São Paulo: É Realizações, 2012].

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compreender e interpretar aquele tempo. Resta saber, utili-zando a célebre distinção de Luigi Pareyson, se se trate de um pensamento expressivo de um certo momento histórico ou se é o pensamento revelativo de uma verdade inobjetivável26.

Não se trata de uma época, mas de uma virada linguís-tica, falou aproximadamente nos mesmos anos Richard Rorty, segundo o qual reler o que aconteceu em um deter-minado momento da filosofia não significa reassumir em torno a um método ou a uma prática as temáticas filosófi-cas. Para o filósofo americano,

a história da filosofia é retalhada pela revolta contra as práticas de filósofos do passado e pelas tentativas de transformar a filosofia em uma ciência – uma disciplina que possa fazer uso de procedimentos de decisão universalmente reconhecidos por testar te-ses filosóficas. […] Em todas estas revoltas, o objeti-vo do reobjeti-volucionário é de substituir o conhecimento por opinião e de propor que o verdadeiro significado “da filosofia” o cumprimento de uma tarefa qual-quer termina mediante a aplicação de um certo con-junto de diretivas metodológicas27.

Essas revoluções são na maioria das vezes falidas, mas foram, contudo, úteis porque cada uma delas obrigou “a” filosofia a utilizar melhor os próprios instrumentos e as próprias armas. A esta leitura não se subtrai à “filosofia 26. Pareyson, Luigi. Verità e interpretazione. Milão: Mursia, 1971, p. 15-31. N.T. [ Pareyson, Luigi. Verdade e Interpretação. Tradução Maria Helena Nery Garcez, Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes, 2005].

27. Rorty, Richard. La svolta linguistica. Tre saggi su linguaggio e filosofia. In-trodução de D. Marconi, trad. it. di S. Velotti. Milão: Garzanti, 1994, p. 25. N.T. [ Rorty, Richard. Conseqüências do pragmatismo. Trad. João Duarte. Lisboa: Ins-tituto Piaget, 1999].

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linguística”, a qual não é uma revolução, mas compreende os problemas filosóficos “como problemas que podem ser resolvidos (ou dissolvidos) ou reformando a linguagem, ou ampliando o conhecimento da linguagem que usamos”28. O

que anuncia uma questão sem oferecer uma resposta uní-voca, já que as posições dos autores que Rorty discute são muito diferentes entre elas. Portanto, “se retorna” ou se vira a página, para responder de modo distinto, possivel-mente melhor, às perguntas que o próprio tempo põe, sem pretender dar uma resposta definitiva.

Contudo, se mostra o retorno sobre as questões já anun-ciadas no primeiro dos três textos publicados sob o título

Las volta linguistica, que remonta aos anos 1960, nos dois

textos sucessivos, redigido sem 1975 e em 1990 nos quais, observa Diego Marconi, o autor toma as distâncias da vira-da linguística mesma29. Escreve Rorty:

Gostaria de evidenciar que os filósofos do século XX – Dewey, Heidegger e Wittgenstein, sobretudo, mas também Quine, Sellars e Davidson, nos têm mostra-do como evitar o representacionalismo. Fizeram-no, no entanto, não dissolvendo velhos problemas, nem mostrando-nos que eles reposavam nas “confusões conceituais” ou nos “mal-entendidos linguísticos”, mas propondo um modo novo de descrever o conhe-cimento e a pesquisa. O único sentido no qual esta proposta foi “linguística” é aquele no qual se pode dizer que a modificação de uma cosmologia tolemai-co-aristotélica para uma cosmologia copernicano--newtoniana foi uma modificação de “linguagem”. E é um sentido muito atenuado, porque em ambos

28. Rorty, op. cit., p. 29. 29. Rorty, op. cit., p. 7.

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os casos se pode falar tanto de uma modificação te-órica, quanto de uma modificação de linguagem”30.

A questão, por isso, concerne menos quanto exista de “lin-guístico” na virada que Rorty interroga e mais como se respon-da aos problemas. A sua resposta é clara: essa virarespon-da tornou possível o abandono do paradigma moderno do representacio-nalismo; por outro lado, a contribuição da virada linguística está no ter favorecido “a passagem da discussão sobre a expe-riência como medium de representação ao falar da linguagem como esse medium: uma passagem que revelou-se mais tar-de propícia à provisão da própria noção tar-de representação”31.

Dito isto, no quadro mais amplo que procuramos desenhar, Rorty oferece uma indicação útil: em filosofia, não se trata de individualizar a que compete o primado, dado que “nem “filosofia” nem linguagem (são) etiquetas para algo unitário, contínuo ou estruturado”32. E à acusação de propor com isto

o fim da filosofia, Rorty responde que esta “não é um gêne-ro de coisa que possa ter fim”33, ao contrário dos programas

filosóficos ou dos campos de pesquisa específicos que estão destinados ao crepúsculo. Em vez, “o compromisso moral dos filósofos deveria ser o de continuar a conversação do Ociden-te” através de uma “forma de filosofia sistemática que não tem nada a ver com a – epistemologia, mas que é capaz de tornar possível a pesquisa filosófica normal”34.

30. Rorty, op. cit., p. 145. 31. Rorty, op. cit., p. 145-146. 32. Rorty, op. cit., p. 147. 33. Rorty, op. cit.

34. Rorty, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Oxford: Blackwell, 1979; Idem. La filosofia e lo specchio della natura. Ed. it. Organizada por D. Mar-conie G. Vattimo. Trad. G. Millone, R. Salizzone. Milão: Bompiani, 1986, p. 304. N.T. [ Rorty, Richard. Filosofía e o espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002].

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O abandono da epistemologia por uma “pesquisa filosó-fica normal”, que nem A filosofia e o espelho da natureza en-contra na hermenêutica a forma adequada35, é ocasionada

pela obra de Thomas S. Kuhn, da qual Rorty toma a ideia guia que a passagem da epistemologia à hermenêutica seja mediada pela mudança interna a epistemologia e a histó-ria da ciência. Não por acaso o filósofo americano insiste, comentando as teses de Kuhn, sobre a incomensurabilida-de dos paradigmas no interior da ciência. Isto lhe interessa porque a ideia que ele sustenta – contra a epistemologia que procura a comensurabilidade a partir de um terreno comum, na ausência da qual a racionalidade estaria seria-mente ameaçada – é que a hermenêutica consiste em colhe-ras relações entre os vários discursos “como linhas de uma possível conversação que não pressupõe matrizes discipli-nares comuns aos falantes, mas que mesmo dura mantém a esperança de acordo”36. Ainda mais, para a hermenêutica

ser racionais significa querer abster-se da epistemo-logia […]. Familiarizar-se como jargão do interlocu-tor antes que traduzi-lo no próprio. Para a epistemo-logia ser racionais significa encontrar o conjunto de termos adequados à tradução de todas as contribui-ções para tornar possível o acordo. […] Esta ideia de interpretação sugere que alcançar a compreensão se assemelha mais a conhecer uma pessoa que a seguir uma demonstração37.

A extensão da acepção de hermenêutica que Rorty opõe à epistemologia, coloca por direito próprio o autor no mo-35. Rorty, op. cit., sétimo capítulo. Dall’epistemologia all’ermeneutica, p. 239-273. 36. Rorty, op. cit., p. 241.

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mento hermenêutico da razão, talvez de uma forma ainda mais radical do quanto foi evidenciado por Greisch, ou seja:

não pela associação de interpretação e compreensão ou pela

inacessibilidade do ato interpretativo, mais radicalmente, pela extensão que realiza o próprio termo “hermenêutica”, que entendido como acolhimento da “relação entre os vários discursos” é capaz de familiarizar-se como discurso do outro e que traduz na medida em que reconduz as diferenças em

um terreno comum. Esta “tradução enquanto recondução”

torna-se A virada linguística, e Rorty recorre a ela quando observa que nós nos comportamos em relação à filosofia do passado como em relação aos primitivos, traduzindo o que eles dizem em nosso universo para responder as nos-sas perguntas ou exigências38. No fundo, a virada linguística

não anteciparia algo mais desde a abertura hermenêutica à coabitação de modelos diversos, talvez destinados a não encontrar-se, mas certamente obrigados a coexistir.

Os exemplos apresentados ( Greisch, Henry, Rorty), efe-tivamente, mostram que a razão vive certamente de seus momentos e época, cada uma delas teve e temas suas legíti-mas “razões” e cada uma delas compartilha – muitas vezes polemicamente – os mesmos espaços da outra, frequente-mente disputadas. Nessa disputa, se diria que cada momen-to expressa um modo de interrogar os texmomen-tos, de habitar o mundo, de estar como outro e os outros, reconstruindo a ge-nealogia da qual quer ser descendente. Por que falar, então, em traçar o quadro destas páginas, de momento hermenêu-tico da razão e não, por exemplo, de momento fenomenoló-gico o momento linguístico, se estes momentos na realidade coabitam? Porque a hermenêutica lidou com ambas, com a 38. Rorty, La svolta linguistica, op. cit., p. 38-39. N.T. [ Rorty, Richard. Conse-qüências do pragmatismo. Trad. João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1999].

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fenomenologia durante acontecimentos bem conhecidos, es-pecialmente ao que se refere à relação Husserl- Heidegger; com a virada linguística porque a centralidade assumida pela linguagem é igualmente bem conhecida.

O que não pretende contestar a existência de outros momentos da razão e de modos diversos de compreender a realidade e a filosofia (e já foi referido a Derrida). Mostra a atual situação filosófica, na qual é difícil identificar uma

dominante – uma nota da escala diatônica que rivaliza com

a tônica, ou seja, o primeiro grau, a escala. Se, portanto, a hermenêutica foi uma koinè do século XX, para retomar uma célebre definição de Gianni Vattimo que, na Itália, fazia eco ao momento hermenêutico da razão da qual falava Greisch, esta koinè que respondeu ao seu tempo parece, hoje, respon-der-lhe menos. Parece responrespon-der-lhe menos em um momento no qual o novo realismo, entre os protagonistas está Mau-rizio Ferraris, se opõe ao pensamento pós-moderno fraco e interpretante, chamando atenção para não recair na koinè englobante do século precedente. Ferraris, na verdade, in-troduzindo o Manifesto do novo realismo39, contesta o fato de

que, para o realismo, se possa falar de koinè, pois a realidade se impõe em oposição à dimensão linguístico-interpretante. E é pelo contrário a realidade, para ser franca, que se estabe-lecida na virada do pensamento de Ferraris, como ele mesmo declara, decidindo pelo seu abandono à hermenêutica40. Se,

por sua vez, o momento hermenêutico da razão nascido da destruição/desconstrução, o momento realista se aproxima da reconstrução. Ou seja: defronte a uma realidade inalterá-39. Ferraris, Maurizio. Manifesto del nuovo realismo. Bari-Roma: Laterza, 2012. 40. Ibidem, p. IX-XI.

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vel, o saber “como atividade conceitual, linguística, delibe-rada e, sobretudo, emancipativa”41, desempenha o papel de

reconstrução, ao qual vem a seguir a desconstrução42.

Assim, somos colocados fora não só da koinè hermenêu-tica mas, mais claramente, de toda koinè que preceda ou queira ser o pressuposto da realidade. O que não exclui a referência ao texto e, inclusive, a passagem para além do transcendentalismo (talvez até fenômeno lógico, embora a referência seja apenas a Kant) acontece por uma

transfor-mação do transcendentalismo mesmo em textualismo

fra-co43, segundo o qual “nada de social existe fora do texto”44

e pelo qual a regra dos objetos sociais – versus Searle – é “Objeto = Ato Inscrito”45.

Com isto, todavia, não só se prospecta a tese de Ferraris mas também a quaestio na qual se põe em jogo a

distân-cia da hermenêutica, quaestio que é o “objeto” e, mais em

geral a realidade, termos que não só põe em questão – até o seu abandono – a hermenêutica, mas fizeram-no, antes, também no que diz respeito ao horizonte com o qual a her-menêutica mesma a um certo ponto assumiu o seu primeiro

pólemos, a fenomenologia. Quando Roman Ingar depende

41. Ferraris, op. cit., p. 79. 42. Ferraris, op. cit., p. 79 ss.

43. Ferraris, Maurizio. Documentalità. Perché è necessário lasciare tracce. Bari: Laterza, 2009. A transformação do transcendentalismo foi a via percorrida, com outra intenção e para a direção da semiótica transcendental, por Apel, Karl-Otto em Transformation der Philosophie. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1973, v. I, p. 9-22. Para uma apresentação do autor e desta perspectiva: Man-cini, Roberto. Linguaggio e etica. La semiótica trascendentale in Karl-Otto Apel. Gênova: Marietti, 1988.

44. Ferraris, Documentalità, op. cit., p. 144, retomado e comentado em Ferraris, Manifesto del nuovo realismo, op. cit., p. 75 ss.

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ao mestre Husserl de perdoar as suas heresias46, a

ques-tão para qual se torna herético e que o opõe ao fundador da fenomenologia nasce das observações críticas dirigidas a Quinta e a Sexta das Investigações lógicas. Sobretudo a

Sexta investigação” falta de uma indagação sobre a essência

do “objeto”, vale dizer, do ser (no sentido mais estrito: da realidade)”47 e logo depois, de ter discutido a questão dos

noemas e dos nexos” noemáticos de sentido”48 escreve:

Não posso aderir a este idealismo. Não posso renun-ciara heterogeneidade essencial entre consciência e realidade (ou, mais em geral: ser) […]. A diferença entre os modos de ser consiste no fato que isto que é elemento real do mundo externo possui por essên-cia um ser “mudo” (obscuro, tácito, inconsciente), enquanto a consciência existe precisamente no ser--consciente-de-si [Selbst-bewußt-sein]”49. A

realida-de, escreve ainda Ingarden logo depois de ter pedi-do ao mestre de perpedi-doar as suas heresias, “existe só na medida em que é “em si”50.

46. É sabido que a paternidade da definição da fenomenologia como “heresia” é de Roman Ingarden ( Ingarden, Roman, “Lettera a Husserl sulla Sesta ricerca e l’idealismo” (julho de 1918), em “Il realismo fenomenologico. Sulla filosofia dei circoli di Monaco e Gottinga”. In: Idem. “Discipline filosofiche”, volume organizado por S. Besolie L. Guidetti. Macerata: Quodlibet, 2000, p. 143. A tradução é de V. De Palma.) Foi então, Ricœur quem difundiu e tornou conhecida esta definição: “A fenomenologia no sentido mais amplo do termo, é a soma da obra husserliana e das heresias surgidas a partir de Husserl” ( Ricœur, Paul. Husserl (1859-1938). In: Idem. À l’école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 1986, p. 9). Para uma história da feno-menologica, consultar o texto organizado por Costa, Vincenzo e Cimino, Antonio. Storia della fenomenologia. Roma: Carocci, 2012. N.T. [ Ricœur, Paul. Na escola da fenomenologia. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009].

47. Ingarden, Lettera a Husserl sulla Sesta ricerca e l’idealismo (fine luglio 1918). In: Ingarden, Roman. Il realismo fenomenologico. Sulla filosofia dei circoli di Mo-naco e Gottinga. Discipline filosofiche, v. organizado por S. Besoli e L. Guidetti. Macerata: Quodlibet, 2000, p. 139.

48. Ibidem, p. 141. 49. Ibidem, p. 141 e 142. 50. Ibidem, p. 143.

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O próprio Ingarden pergunta se o debate pode ter legiti-midade dentro da obra que Husserl está desenvolvendo. É um fato que o problema se põe quanto à imagem da realidade, não adequadamente colhida na sua “essência”, segundo o filósofo de Cracóvia, nos escritos redigidos depois da Quarta

investiga-ção lógica que, é bom lembrar, era dedicada aos significados

independentes e não independentes. É importante recordar que o manuscrito da carta termina com estas observações:

Pressuposto que o sentido da realidade […] se con-serve também na consideração constitutiva, e por-tanto que todo real seja um ser-em-si e que o mundo externo real seja alguma coisa essencialmente es-tranho à consciência, surge em primeiro lugar uma questão ontológica: a essência da realidade é uma essência independente e especialmente – enquan-to essência – independente em relação a essência da consciência, ou não? Em princípio existem qua-tro possibilidades: (1) a realidade (como essência) é não-independente, mas a essência-consciência é independente, de modo que pode existir sem a es-sência da realidade; (2) A eses-sência da realidade e a essência da consciência são independentes; (3) A essência da realidade é independente, a consciência não-independente; (4) Ambas são não-independen-tes e relativas a uma e a outra51.

A questão levantada por Ingarden é clara, tanto quanto o são as soluções que prospecta, mas não muda o fato que esta crítica conduzida para salvar as exigências do objeto e da realidade é uma heresia que continua fenomenológi-ca. Para a hermenêutica, que nunca conheceu “ortodoxias”, o termo heresia seria totalmente inadequado. Mais que de 51. Ingarden, op. cit., p. 151.

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heresias, para a hermenêutica seria talvez oportuno falar de repetições de questões que se repetem, justamente, para que seja manifestado o que ainda não tinha sido mostrado e, junto, o núcleo interpretativo próprio da filosofia. Um ponto interrogativo, porém, concluía não por acaso o título deste parágrafo: aconteceu um momento hermenêutico da razão?

Por um certo período a hermenêutica foi um percurso muito praticado que coincidiu com uma das possíveis desig-nações feitas pela abertura da filosofia a religião e a teolo-gia52, a poesia e à arte em geral. Foi e ainda é um momento

caracterizante um novo saber e uma modalidade de exercício da razão sem a pretensão de ser o único, evidentemente. Uma

âge herméneutique da razão, logo, existiu, sem a pretensão de

ser a dominante e, sobretudo, a única. Hoje este momento parece tramontado, ou talvez transformado e repetido para ir além da hermenêutica mesma, repetição que será seguida para responder a esta pergunta: quais percursos abre a re-petição da hermenêutica, rere-petição que a transformou, para repensar a tradução – cuja hermenêutica mesma, foi dito, ofereceu um dos âmbitos para a sua discussão filosófica?

b. A hermenêutica depois da koiné

Depois do momento da koinè, de hermenêutica talvez se fale menos. O que não significa, evidentemente, que de uma hora para outra essa disciplina não seja mais capaz de 52. Ferretti, Giovanni. Filosofia e teologia cristiana. Saggi di epistemologia erme-neutica. Nápoles: Esi, 2002, motivando o subtítulo do seu trabalho (Saggi di epis-temologia ermeneutica) provocatoriamente observava que “o procedimento her-menêutico, longe de se contrapor a um procedimento metódico cientificamente rigoroso de pesquisa da verdade, para a sua presumida “fraqueza”, “subjetiva opi-nabilidade”, “simples alusividade poética”, é a via mais adequada para a pesquisa seja da verdade filosófica seja da verdade teológica, como também para a indivi-dualização da correta relação recíproca entre filosofia e teologia” (Ibidem, p. 7).

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ler o tempo ou que faltem interpretações originais da her-menêutica filosófica53, nem significa que tenha se exaurido

o debate europeu ou que, depois de um momento de trocas e pesquisas comuns, a koinè hermenêutica tenha cedido a passagem para outras linguagens também comuns. De certa forma, se trata da mesma questão que afronta a entrevista de Antonio Cimino a Günter Figal, publicada na conclusão da edição italiana de Gegenständlichkeit, Objetualidade54. A

pergunta que investiga quais são as futuras perspectivas da filosofia hermenêutica, Figal responde:

Isto que faço votos é uma concepção menos “discipli-nar” do pensamento hermenêutico-fenomenológico.

53. Alguns nomes poderiam prolongar as várias histórias da hermenêutica: da escola fundada por Luigi Pareyson, Gianni Vattimo, Giuseppe Riconda, Ugo M. Ugazio, Claudio Ciancio, Ugo Perone, Federico Vercellone, Maurizio Pagano. Em proximidade com esta escola consultar à obra de Giovanni Ferretti; para uma sensibilidade diferente, sempre hermenêutica, consultar a vasta obra de Roberto Mancini. De inspiração hermenêutica é também a reflexão de Enrico Guglielmi-netti, Gaetano Chiurazzi, Gianluca Cuozzo. A aluna de Hans G. Gadamer é Do-natella Di Cesare, mas a lista de estudos e pesquisas conduzidas sobre Gadamer poderia ser ampliada. Deveriam ser citados também os numerosos estudiosos da hermenêutica heideggeriana, entre os quais limitamos a citação com Furia Valori, Leonardo Samonà e Adriano Fabris, ou ainda a hermenêutica da finitude de Ma-rio Ruggenini. De novo, todavia, a lista deveria ser prolongada ainda e bem além destas poucas delimitações. A citação dos estudiosos que na Itália têm recebido e desenvolvido o pensamento de Paul Ricœur obrigaria, finalmente, a escolhas mui-to redutivas. Na área francófona, além de Jean Greisch, se destaca a obra de Jean Grondin e Claude Romano, sobretudo a hermenêutica do acontecimento desenvol-vida em L’événement et le monde e L’événement et le temps, ambos aparecem junto ao editor PUF, Paris respectivamente 1998 e 1999. Para uma radicalização da herme-nêutica, consultar: Caputo, John D. More Radical Hermeneutics. On not Knowing who we are. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2000. 54. Figal, Gunter. Gegenstandlichkeit. Das Hermeneutische und die Philosophie. Tu-bingen: Mohr Siebeck, 2006; Idem. Oggettualità. Esperienza ermeneutica e filoso-fia. ed. it. organizado por A. Cimino. Milão: Bompiani, 2012. N.T. [ Figal, Gunter. Oposicionalidade. O Elemento Hermenêutico e a Filosofia. Petrópolis: Vozes, 2007].

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Embora reconheçamos o nosso pertencimento a uma particular tradição filósofica, o trabalho filosófico não é entendido como contribuição a uma corren-te filosofica; os seus esclarecimentos deveriam ser plausíveis também com outros pressupostos. A filo-sofia […] é vital se está interessada em modo incon-dicionado ao mundo e colhe o seu interesse sem en-volver-se em pressupostos (e) fixações dogmáticas55.

Resposta que a maior parte daqueles que têm pratica-do ou praticam o pensamento hermenêutico condividiriam. Diremos, então, que o destino da hermenêutica é a sua su-peração, como o destino da fenomenologia foram as suas heresias? Vem à mente, lendo a resposta de Figal, ao que Jean-Luc Marion escrevia sobre a fenomenologia na

Premis-sa de Redução e doação:

Nas páginas que, não temos tentado fazer outro se não ressaltar o modo de pensar fenomenológico en-quanto tal, sem confundi-lo com sucessivos e, em um certo sentido, objetivos provisórios. Se na fenomeno-logia – ao contrário da metafísica – a possibilidade realmente excede, pelo que concerne à verdade, a

efetividade, é preciso impulsionar esse princípio até

as suas extremas consequências, até exercê-lo, even-tualmente contra a fenomenologia já realizada. Na realidade, não se supera um verdadeiro pensamento recusando-o mas repetindo-o, ou seja, tomando por empréstimo os meios para pensar com ele para além dele. Nele, o fracasso também tem êxito56.

55. Figal, op. cit., p. 1271.

56. Marion, Jean-Luc. Réduction et donation. Recherches sur Husserl, Heidegger et la phénoménologie. Paris: PUF, 1989; Idem. Riduzione e donazione. Ricerche su Husserl, Heidegger e la fenomenologia. ed. it. organizado por S. Cazzanelli. Veneza: Marcianum Press, 2010, p. 29.

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