3.1 No Oriente, um ministério laical (séculos IV-VI)
André Louf esclarece que, na linguagem dos Padres, chama-se
“ancião” a quem, por uma provada experiência e por longos tem-pos de discernimento, de estudo e de oração, “tornou-se destro nas coisas de Deus”. É um termo bíblico que encontra seu cor-respondente aramaico na exclamação “Abba, pai”, com explícita alusão ao “Pai” de quem Cristo e o “abade” são imagens.53
A experiência, o testemunho, o amor e a palavra o transfor-mam em “mestre” e “pai”. A ambos foi dado o dom de conhecer
51 Aldino Cazzago, “Prefazione”. In: Joseph Allen, La vita interiore: la direzio-ne spirituale del cristiadirezio-nesimo orientale. Aos cuidados de Aldino Cazzago. Mi-lão, Jaca Book, 1996, p. 14-15.
52 “Antonio”, 27. In: Lucien Regnault, “Padri sempre vivi”. In: Abba, dimmi una parola! Qiqajon-Comunità di Bose, 1989, p. 47.
53 André Louf, “La paternità spirituale”. In: Abba, dimmi una parola!, p. 92.
Ibid., p. 59.
Algumas citações bíblicas: Atos dos Apóstolos 11,30; 14,23-28; 15,2.4.6.22;
20,17; 1ª Carta de Timóteo 5,17; Carta de Tito 1,5; 1ª Carta de Pedro 5,1.
os corações e de acompanhar a obra de Deus neles. Porém, o pai é tal enquanto gera o filho na fé, por meio da palavra que vivem e que partilham.
A tradição do ministério espiritual dos anciãos remonta, segundo estudiosos como Ivan Kontzecitch,54 à idade apos-tólica, porém se institucionalizou no Egito, entre anacoretas e cenobitas, depois da paz constantiniana de 313. O abade Antão (251-356) e Pacômio (292-346), o primeiro grande cenobita, eram leigos e foram discípulos de anciãos seculares, cheios de sabedoria, que os tinham precedido no deserto.55
“Assim, o deserto do Oriente gerou o monacato, uma vocação essencialmente leiga.”56
Os contatos dos discípulos com eles levavam a uma me-tanoia, à conversão da mente e da vida. Uma transformação radical que era fruto, diz São João Clímaco, da esperança cristã, pois somente a opção radical por Cristo não frustra as aspirações e inquietudes transcendentais do ser humano.57 Era um dos aspectos do profetismo do mestre de espírito. Essa mudança era possível porque Deus atuava por meio dessas humildes mediações humanas.58
Exortar e confortar, juntamente com seu apostolado es-pecífico do serviço de guia, foram características dos anciãos conscientes de ter recebido esses dons com o Batismo. Nascia no Oriente a direção espiritual sistemática do monacato e nele criava raízes como uma especialidade própria dos monges.
54 “Eldership”. In: Epiphany Journal. 1989, p. 35-44 (Joseph Allen, op. cit., p. 35).
55 Jean-Claude Guy, op. cit., p. 126-127. O anacoreta é o monge solitário; o cenobita vive em comunhão com discípulos, ordinariamente “ouvintes” de um mesmo mestre.
56 Joseph Allen, op. cit., p. 36.
57 Joseph Allen, op. cit., p. 35.
58 Ivan Kontzecith, op. cit., p. 36. O autor cita São Paulo aos Efésios (4,11) e a 1ª Carta aos Coríntios (12,28).
3.2 No Ocidente, fruto do sacerdócio ministerial (séculos VIII-IX)
No Ocidente, foi de outra maneira. Dirigir espiritualmente era ministério conferido pela ordem sacerdotal e se reduzia à confissão e à absolvição sacramental.
Por volta dos séculos VIII e IX se impôs a necessidade de um acompanhamento mais especializado e demorado. Os bispos e presbíteros, que tinham começado a interessar-se por seguir mais cuidadosamente a vida espiritual dos fiéis, se viram limitados para isso pelas crescentes responsabilidades administrativas e pastorais exigidas pela organização das Igrejas locais. Dada esta urgência, “o ouvir as confissões se tornou, então, assunto quase exclusivo dos monges”.
Não obstante, o ministério da direção espiritual continuava a se difundir entre o clero secular, não já como uma obrigação do sacerdócio ordenado, mas como um carisma particular.
Continuou em fermentação, ao menos em Constantinopla e em outros setores da Ásia Menor, de modo que desde o século XIII a direção espiritual pertencia ao ministério ordinário dos presbíteros.
Depois, na época moderna, a partir de 1800, se impôs no Ocidente a tendência teológica e pastoral segundo a qual o que especificamente caracterizava os presbíteros em seu ministério eram a confissão e absolvição dos pecados. Ao passo que no Oriente, e particularmente no cristianismo russo, ao sacramento da Reconciliação continuou unido o acompanhamento espiri-tual, e se tornou habitual a presença de “homens espirituais”, presbíteros ou leigos, monges ou membros do clero secular, dedicados ao acompanhamento de seus irmãos na fé.59
59 Joseph Allen, op. cit., p. 37-38. Francis Desramaut trata o tema da “sacer-dotalização” da direção espiritual em sua comunicação Note sulla direzione spirituale nei tempi moderni, no colóquio sobre a vida salesiana, realizado em Cison de Valmarino, Treviso, de 22 a 27 de agosto de 1982. Cf. La direzione spirituale. Leumann-Turim, Elledici, 1983, p. 32-34.
3.3 Os “médicos da alma” e o valor do discernimento espiritual
Secular ou presbítero o ancião tinha, em geral, um minis-tério de cura, que os fazia médicos da alma. O ancião era o especialista por excelência.
O sacerdote, por sua vez, absolvia dos pecados. Porém, escutava com paciência, diagnosticava junto com o paciente sua doença ou sua fragilidade e seus desejos, e acompanhava.
Era reconhecido como um ancião. E gerava discípulos na fé, era pai.
Uma cura interior não se encerrava de todo se a relação entre discípulo e mestre não chegasse a ser uma verdadeira amizade.
Era o que dizia a experiência dos monges: “O diretor espiritual, efetivamente, não era para eles um mestre de técnicas espiri-tuais, mas sim um pai que ajudava a crescer na vida interior por meio da oração, da atenção e do cuidado pastoral de seu filho”. E um amigo, se cresciam no diálogo recíproco com seu pai, partilhando feitos e sentimentos profundos, nos processos de amadurecimento pessoal na vida.60
Porém, o ministério de cura não esgotava o ministério da direção espiritual. Era somente o começo. O processo continua-va, logo, como um caminho interior, que se fazia em comum, buscando a plena “deificação” do discípulo. Deificar-se era, em outras palavras, crescer no amor, sendo Deus: “O Amor”.
Mediante a contemplação do Senhor Jesus, ia se passando do melhor conhecimento de si mesmo à confiança Nele. Da iluminação que ia revelando o mistério da vida no Espírito às opções e às atitudes práticas de vida cristã. Das renúncias aos lucros: aquisição de atitudes evangélicas, crescimento na
cari-60 Kenneth Leech, Soul friend. São Francisco, Harper & Row, 1977, p. 41 (Jo-seph Allen, op. cit., p. 63).
dade e na misericórdia. Em suma: da “imitação” à “semelhança com o Senhor” que, como dizia São Paulo, era já Ele mesmo, a Vida.61
O fio condutor era o discernimento. Sem ele, dizia João Cassiano62 a seus discípulos, nenhuma virtude pode durar ou enraizar-se até o fundo, porque o discernimento é a mãe de todas as virtudes.63
O monge devia pedir ao Senhor que lhe concedesse o guia espiritual de que ele necessitava. Os companheiros de um jovem monge insinuavam a ele que fosse mestre e pai deles. Um dos velhos mestres insistia com esse jovem: “A ti, antes de tudo, corresponde dar o exemplo”, e logo Deus te dará discípulos e filhos.64
Olhar atentamente para o “mestre” levava os ouvintes de sua palavra a aprender, no silêncio sua vida, a própria vida em Deus e fazia com que os discípulos buscassem um pai, como acon-teceu com Antão, o primeiro eremita. Para experimentar essa paternidade os discípulos queriam permanecer com ele. Esta foi a origem do cenóbio. Já não bastava vir visitá-lo esporádica ou periodicamente, mas, sim, permanecer com ele.
A vida eremítica primitiva se desenvolvia em torno do mestre, segundo a práxis ensinada por Antão. Porém, o monge continuava sua experiência de solidão com Deus.
O mosteiro pacomiano, por sua parte, foi inspirado pela necessidade de uma “vida comum”. Ambas as modalidades coexistiram no começo da experiência monacal.65
No mosteiro, a palavra “abade” adquiriu todo o seu sig-nificado. Foram os monges coptas que assumiram o termo
61 Joseph Allen, op. cit., p. 44-53; 62-74; 67.
62 João Cassiano (360-430) é um dos maiores representantes do monacato oci-dental. Viveu sobretudo em Marselha, França.
63 “Philokalia”, 1.18. In: Joseph Allen, op. cit., p. 53, n. 40.
64 Joseph Allen, op. cit., p. 65. In: The desert christian of the desert fathers.
Nova York, 1979, p. 160.
65 Joseph Allen, op. cit., p. 63, nota 72; p. 65, nota 80.
abade para dar o nome adequado a seus mestres. Recordavam as atitudes de Cristo para com seu “Pai”66 e a ação deste no coração do discípulo, por meio do Espírito, para modelar no
“filho”, por meio da purificação e do amor transformante, as feições de Cristo.67