2. A direção espiritual na antiga cultura eremítica
2.2 Homens e mulheres “de Deus” a serviço do próximo
nunca foram um tipo de vida e de ministério reservado aos ho-mens. Houve também “madres” (“ammas”) e uma multidão de anacoretas, além de mosteiros de mulheres e de virgens. Alguns deles reuniram centenas de pessoas e se tornaram centro de irradiação espiritual e de acompanhamento, sobretudo dos se-culares, no caminho da perfeição, como aconteceu no Egito.
38 Cf. São João Bosco, História eclesiástica para uso da juventude. São Paulo, Livraria Editora Salesiana, 1960, p. 97-98.
“O movimento anacoreta e cenobita foi uma realidade igua-litária”, embora estranhamente se contem em alguns catálogos 125 nomes de “pais espirituais”. São quase lendários os de Sara, Sinclética e Teodora, “modelos não só para as mulheres, mas também para os homens”. O famoso anacoreta Piterón, da Te-baida, explicando por que de joelhos pedia a bênção a uma das monjas, dava esta razão às outras irmãs do mosteiro: “Porque tanto para mim como para as senhoras é nossa mãe espiritual”.
Zózimo, também abade, dá a Maria Egípcia o nome de “mãe”.
Realmente, sua vida, escrita por Soforino, bispo de Jerusalém, foi um dos livros mais lidos e meditados nos mosteiros do Ocidente e do Oriente. Tendo vivido solitária durante sete anos, chegou a converter-se em “verdadeiro ícone de Cristo, pregando-nos mais com o exemplo do que com a palavra”.
Os primeiros mosteiros, fundados por Pacômio por volta do ano 320 na zona meridional do Egito, hospedaram milhares de monges e monjas sob uma mesma Regra. Vinte anos depois, Maria, irmã de Pacômio, instituiu um mosteiro ao qual per-tenceram 400 mulheres que uniam à oração e à caridade para com o próximo a confecção de variadíssimas manufaturas para a própria subsistência, inclusive a transcrição de manuscritos.
Os monges presbíteros, residentes na outra margem do Nilo, as assistiam com seu ministério. A Sagrada Escritura e, sobretu-do, a Salmodia e o Novo Testamento eram a linguagem quase habitual em que se falavam.
Na Tebaida, no Alto Egito, foi notável Talis, chamada de “a mãe”, que chegou a acolher em seu cenóbio 60 moças que se distinguiam por sua maturidade e seu fervor espiritual. Viviam da palavra de sua mestra e tinham feito do mosteiro a sua casa.
A 80 quilômetros de Alexandria, o deserto de Nitria chegou a se povoar com mais de 5 mil eremitas, distribuídos em grupos diversos e em pequenas cabanas denominadas celas (cellia), como se começou a chamá-las desde então.
Melânia era de linhagem romana. Ficando viúva de Valério Máximo, prefeito da Urbe, buscou também a solidão do deserto da Nitria para se dedicar só a Deus. Estabeleceu-se depois em Alexandria. Surgindo dificuldades nessa cidade africana, vendeu seus bens e os distribuiu entre os cenobitas e os pobres. Logo zarpou para Jerusalém, e no Monte das Oliveiras fundou dois mosteiros. Foi uma mulher excepcional, até intelectualmente.
Morreu aos 70 anos e sobre ela escreveram Paládio, historiador, e São Jerônimo. Um amigo deste, chamado Rufino de Aquiles, foi nomeado por ela superior do convento masculino que tinha criado em Jerusalém.
Descendente de Júlio César, Paula, a Maior, foi aparentada com a nobreza romana. Também pertenceu ao grupo especia-lizado no estudo das Escrituras, criado por Marcela.39 Paula, coração eremita, foi notável na sabedoria bíblica. Foi no con-vento que fundou, em Belém, que começaram a recopilar e transcrever sistematicamente as Escrituras Sagradas.
Ambas eram admiradas por São Jerônimo por causa de suas virtudes e sua cultura. Porém, além disso, Paula se dedicava inteiramente a promover o bem da gente mais miserável e dos peregrinos, dos órfãos e dos enfermos, para quem construiu um albergue na Cidade Santa. Ao morrer, por volta do ano 418, sua neta, Paula, a Jovem, assumiu a obra e a tradição literária e bíblica da avó, quando não tinha ainda chegado aos 20 anos de idade. São Jerônimo diz que ela era uma das “maravilhas” que tinha deslumbrado na Palestina, por suas virtudes e seu saber.
No Oriente Próximo e no Oriente Médio, a mãe e a irmã daquele que seria São Basílio, o Grande, e que precederam a ele
39 Santa Marcela. Conheceu em Roma Santo Atanásio e os dois monges que o acompanharam a Roma. Deles ouviu maravilhosas histórias sobre o deserto, povoado por solitários. Ficando viúva, criou um eremitério em seu próprio pa-lácio, no Aventino. De 382 a 385, foi discípula de São Jerônimo. Quando este partiu para o Oriente, aos poucos a comunidade do Aventino se desfez. Em 410, Marcela presenciou o saque de Roma pelos visigodos de Alarico. Morreu pouco depois.
próprio, abriram um princípio de mosteiro dedicado à leitura e ao estudo da Bíblia, à oração, à vida ascética e fraterna e entregue ao serviço do próximo. Persuadido por seu testemunho e suas palavras, Basílio haveria de suscitar o movimento cenobítico, que se estendeu pela geografia grega e eslava até os confins da Mesopotâmia, bem além das fronteiras de Cesareia da Capa-dócia, sua sede episcopal, no século IV da Era Cristã.
Porém, lembremo-nos, ao terminar esta sinopse, que os próprios Antão e Pacômio, grandes abades com quem começa a história do monacato oriental, tinham por guias e mestres não sacerdotes e bispos, mas simples anciãos. Seculares, “cheios de experiência e de sabedoria”, que os tinham precedido no deserto.40
40 Jean-Claude Guy, “Antonio e Pacomio”. In: Abba, dimmi una parola! Qiqa-jon-Comunità di Bose, 1989, p. 126.
VV.AA.Mujeres que se atrevieron. Com contribuições de Isabel Gómez-Ace-bo, María Jesús Muñoz Mayor, María Teresa Pandelet, María del Mar Graña, María de Pablo-Romero, Victoria Howell, Diana Vallescar. Bilbao, Desclée de Brouwer, 1998, p. 56-64.
Carlos Rafael Cabarrús, Cuaderno de Bitácora, para acompañar caminantes.
Guia psico-histórico-espiritual. Desclée de Brouwer, 2000, p. 35-39.
Antão, Abade, séculos III-IV. Na Tebaida (Alto Egito) fundou os primeiros mosteiros do cenobitismo oriental.
Pacômio, eremita contemporâneo de Antão, além de ter fundado um mosteiro nas margens do rio Nilo, escreveu uma Regra que teve grande influência na organização da vida religiosa primeva.
Basílio, o Grande (329-379), irmão de São Gregório de Nissa, foi bispo da Igreja grega em Cesareia. Sua Regra enfatiza aspectos do espírito de pobreza, como a simplicidade e a humildade (simplicitas et vilitas), sinais da “renúncia interior e de pureza de coração”. Com ele se dá a primeira tentativa de uma fun-damentação teológica da vida monacal, nas fontes do cristianismo primitivo.
No Oriente, sua Regra teve influência semelhante à de São Bento no Ocidente.
Também viveu no século IV Paládio, morto em 431, anacoreta autor da História lausíaca – ou da vida monástica (laudo = deserto povoado por cenóbios, ou seja, de mosteiros femininos) –, na qual descreve a condição da primitiva vida religiosa (Gregoria Penco, Il monachismo fra spiritualità e cultura. Milão, Jaca Book, 1991, p. 21).